Alice Tavares, presidente da APRUPP
“Nos dias de hoje o termo “reabilitação” está massivamente confundido com “reconstrução””
A Associação Portuguesa para a Reabilitação Urbana e Protecção do Património conta já com 10 anos de existência. Se desde então a reabilitação ganhou uma nova dimensão, mas muitos foram os casos em que prevaleceu o “fachadismos” e a especulação imobiliária, com menos de 5% do edificado a ser representativo das identidades das cidades
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Alice Tavares, presidente da Associação Portuguesa para a Reabilitação Urbana e Protecção do Património (APRUPP), falou ao Construir sobre os principais desafios deste tipo de construção e do muito que ainda há a fazer para uma reabilitação efectiva do edificado. A definição de uma estratégia nacional de reabilitação, a criação de uma entidade supramunicipal que faça em relação ao património edificado (não classificado) algo idêntico ao que uma REN faz em relação às áreas de reserva ecológica e tornar obrigatória a inspecção e diagnóstico com identificação de valores culturais e patrimoniais dos edifícios a intervir são alguns dos pontos a melhorar
Que balanço faz dos 10 anos da APRUPP?
A Associação Portuguesa para a Reabilitação Urbana e Protecção do Património (APRUPP) foi fundada em 2012, no Porto. Na altura, as imagens pesadas de centros históricos abandonados, com problemas sociais e de segurança, faziam parte do dia-a-dia. A constituição das Sociedades de Reabilitação Urbana (SRUs) no Porto e em Lisboa, enquadradas pela legislação de 2009, 2012 e 2014 (no caso de Lisboa) apresentavam uma mudança de paradigma de intervenção dos municípios, com poderes que lhes conferiam uma nova autonomia de acção, com algumas dificuldades de replicação para outros municípios do país, reforçando assimetrias de investimento imobiliário e público.
Nessa altura, o surgimento da APRUPP, no contexto das associações sem fins lucrativos que actuam na área da protecção do património e da reabilitação urbana, veio marcar uma forma de participação pública que exigia medidas de actuação no território que articulassem a preservação do património com a promoção urgente da reabilitação urbana. O contexto era o da quase total predominância da construção nova em detrimento da reabilitação dos edifícios, em contra-ciclo com a Europa, reforçada por uma crise profunda na construção nos anos anteriores, que obrigou à emigração de muitos técnicos e operários especializados da construção civil (especialmente da reabilitação) e à falência de muitas empresas de construção. A APRUPP, que até então desenvolvia esforços para que os municípios promovessem medidas qualificadas de reabilitação urbana, promovia ela própria, acções de formação em técnicas de reabilitação e de sensibilização em escolas, vê-se confrontada com um demasiado rápido investimento imobiliário, que recorre à reconstrução com demolições extensas como prática corrente de “reabilitação”. Ou seja, na falta de exigência legislativa e regulamentar que definisse quais as empresas qualificadas para fazer reabilitação e as obrigasse a qualificar continuamente os seus quadros para essa vertente, assistia-se à integração forçada de estratégias de construção nova na “reabilitação” do edificado antigo, que tem na génese outros princípios construtivos.
A falta de conhecimento impera sem que haja avaliação do impacto que isso tem nas intervenções. A expectativa de que a entrada da legislação sobre as Áreas de Reabilitação Urbana (ARUs) viesse a promover uma intervenção mais equilibrada e sustentável não se veio a confirmar em grande parte do território nacional. Em pouco espaço de tempo, a APRUPP vê-se confrontada com a necessidade de mudar a sua forma de actuação, deixando o enfoque na necessidade de reabilitação, para o da preparação dos técnicos, para uma sensibilização sobre as boas práticas de reabilitação e para a crítica construtiva em torno do património, que se estava a perder em todo o país.
Em 2015 já era muito evidente a transformação dos centros históricos, decorrente de uma aposta muito clara e, com todos os apoios, no turismo e na especulação imobiliária, com impacto ao nível da acessibilidade dos portugueses a habitação no regime de arrendamento. A APRUPP passa então a alertar para a falta de monitorização dessa transformação, quer em termos do equilíbrio entre funções urbanas, quer em termos da perda irreparável de património.
Na falta de uma legislação nacional que defina qual a estratégia de preservação do edificado antigo com interesse patrimonial e de conjunto, mas não classificado, restava a acção dos municípios e a dos técnicos projectistas que, no entanto, se veio a verificar insuficiente e impotente face à permissão do peso de decisão dos investidores.
A APRUPP acompanha, então, a constituição da nova legislação de reabilitação (dedicada à habitação) que virá a ser publicada em 2019 e onde se introduziram princípios importantes e medidas para uma reabilitação mais assertiva em relação ao edificado antigo. O acolhimento positivo desta legislação deveria ter originado, por um lado, a procura de formação específica pelos técnicos, com a oferta formativa das universidades e do Laboratório Nacional de Engenharia Civil (LNEC), mas também a correção de contrasensos na legislação nacional, nomeadamente a urgente definição correta do termo “reabilitação”, a continuidade de aprimoramento da legislação, abrangendo mais do que a habitação e a publicação de portarias específicas, o que não veio a acontecer.
Com a legislação de 2019 a deixar nas mãos dos técnicos a responsabilidade de apresentarem as necessárias justificações de não cumprimento de normas (só adequadas para construção nova e não para o edificado existente), para garantir que os edifícios com interesse patrimonial não fossem demolidos, ao deixar-lhes essa responsabilidade quase em exclusivo e, com a falta ainda de formação dos mesmos para o fazer, o recurso à demolição integral ou preservação apenas da fachada veio a instalar-se a nível nacional como prática corrente, sem quase obstáculos nenhuns dos municípios.
No presente, a APRUPP vê-se confrontada mais uma vez com contínuos pedidos de cidadãos e outras associações culturais regionais para a defesa de património, de forma crescente e de todo o país, sendo alguns dos casos apresentados, de negligência clara de entidades públicas e de falta de definição de planeamento preventivo de danos. Nunca como hoje o papel da APRUPP foi tão necessário como acção dos cidadãos em defesa do seu património cultural, material e imaterial, obrigando a que esta actue em diversos campos e níveis, regional, nacional e internacional, com a exigência de recursos muito acima do que foi previsto quando foi constituída.
Como vê a reabilitação há 10 anos e nos dias de hoje?
Há 10 anos a reabilitação era vista como a resposta mais assertiva para vencer a crise da construção, para colocar no mercado do arrendamento acessível e da habitação um parque edificado devoluto, como veículo para a dinamização dos centros históricos e
urbanos e a sua devolução à vida dos cidadãos, como um processo de apoio à recuperação económica e à valorização do património.
Nos dias de hoje o termo “reabilitação” está massivamente confundido com “reconstrução”, incluindo na legislação. De uma forma muito abrangente o que se encontra no terreno não é reabilitação, mas sim “fachadismo” demonstrador que, quer as entidades, quer os promotores imobiliários apoiam a criação de realidades urbanas mascaradas.
A APRUPP considera que o “fachadismo” não pode ser considerada a vanguarda da arquitectura, nem uma forma inovadora de revitalizar os centros urbanos. Esta prática anacrónica altamente destruidora do património edificado (não classificado, mas por vezes também o classificado quando a função é a hotelaria, por exemplo) é também a responsável pelo aumento exponencial de produção de resíduos da construção e da colocação das famílias portuguesas cada vez mais dependentes de equipamentos mecânicos e da indústria para garantir o conforto, sob a capa enganadora da “eficiência energética”. Em muitos aspectos, actualmente, a reabilitação está a ser mais responsável pela perda de património do que décadas de abandono.
Contudo, simultaneamente, verificamos que existem intervenções com boas práticas, por um conjunto de técnicos que procura formação especializada adequada, incluindo de gerações mais novas, alicerçadas em empresas de reabilitação com o mesmo nível de exigência, procurando actuar no existente de forma criteriosa e compatibilizando funções e técnicas construtivas com a pré-existência, mais próximas do conceito de sustentabilidade. Devendo estes ser privilegiados nas escolhas em concursos de projecto e obra, o que está frequentemente comprometido pela desvalorização da qualificação em detrimento do preço. Uma factura que surgirá em poucos anos, com a necessidade de reabilitar edifícios recentes.
Como vê hoje o edificado em Portugal? Houve uma evolução no que diz respeito à reabilitação?
O edificado representativo da identidade das nossas cidades representa actualmente menos de 5% do total do edificado, decrescendo acentuadamente nos últimos 10 anos. O edificado dos anos 70 e 80 do século 20 com várias deficiências construtivas, de segurança estrutural e de conforto são mantidos, enquanto se fomenta a demolição de edifícios anteriores a 1950 globalmente de melhor construção e maior potencial de valorização. Predomina a construção nova (considerando a construção total de raiz e o fachadismo).
A evolução da reabilitação apresenta lados positivos, como uma maior consciencialização, vertida recentemente na Lei (2019) sobre a resistência sísmica dos edifícios e a necessidade de os avaliar nessa vertente, principalmente para regiões onde é crítico que tal aconteça, como Lisboa e o Algarve, mas não só. No entanto, continua a ser muito deficitário o uso da inspecção e diagnóstico dos edifícios, o que leva a constantes “surpresas” em obra, com os custos e alargamento de prazos de obra inerentes.
Na falta do conhecimento necessário sobre o edifício existente, por falta da inspecção, a tendência é a da demolição quase total e reconstrução, um aspecto que provavelmente se virá a agravar com as novas regras de concurso concepção-construção. Ou seja, temos algumas áreas da construção na vertente da reabilitação que evoluíram, incluindo do ponto de vista da oferta de materiais industriais, mas em muitas outras regredimos, com a falsa imagem de inovação e modernidade com base em construções serão pouco duráveis.
Qual o papel do Governo e que medidas deveriam ser tomadas?
Actualmente existem muitas vertentes a ser melhoradas na reabilitação e a vários níveis de actuação, que precisam de ser legisladas e redireccionadas, não sendo da exclusiva responsabilidade do Governo. A título de exemplo, destaco a definição de uma linha estratégica nacional de reabilitação com maiores níveis de preservação dos valores culturais e patrimoniais, alicerçada na lei (a criar) e não meramente de procedimentos administrativos, a criação de um entidade supramunicipal que faça em relação ao património edificado (não classificado) algo idêntico ao que uma REN faz em relação às áreas de reserva ecológica, com competências e poderes semelhantes na verificação de PDMs e outros instrumentos de gestão territorial, mudanças ao nível do ensino básico e secundário, por forma a valorizar a formação técnica de cursos ligados à reabilitação e com possibilidade de funcionamento com menor número de formandos dependendo das técnicas especializadas a adquirir, integração obrigatória no currículo da vertente sobre património cultural associada a educação visual e a história, reequilibrando o currículo que nos últimos anos tem permitido uma iliteracia a este nível, redireccionar os apoios financeiros para a eficiência energética ligada à habitação, apostando mais na vertente passiva dos edifícios (apostando na arquitectura bioclimática) e em intervenções com menos produção de resíduos.
Por exemplo, apoiar a introdução de isolamento térmico nas coberturas dos edifícios em detrimento da mudança de caixilharias de madeira, para assim não promover a descaracterização do património e actuar simultaneamente numa medida mais acessível a maior número de cidadãos, com idêntico nível de benefício em termos de conforto.
Tornar obrigatória a inspeção e diagnóstico com identificação de valores culturais e patrimoniais dos edifícios a intervir. Entre muitas outras medidas que falta promover.
Quais os principais erros no que diz respeito à reabilitação urbana?
Os principais erros decorrem de falta de legislação, regulamentação que promovam a valorização da competência e da exigência em detrimento do facilitismo que ficará a curto e médio prazo mais caro. Não é aceitável que empresas da construção que promovem a formação especializada em reabilitação dos seus técnicos e operários sejam preteridas em concursos de construção por empresas sem preparação para a reabilitação e que funcionam com diversas subempreitadas, apenas porque o preço é o critério. O que a nova modalidade de concepção-construção pode vir a agravar com consequências nefastas para a garantia da durabilidade da construção e qualidade da arquitectura.
A falta de monitorização da transformação dos centros históricos é outro erro grave, pois a delapidação do património retira às futuras gerações um recurso valioso para a dinamização cultural e económica do futuro. Devendo-se mencionar que a falta de orientações claras pelos municípios sobre os sistemas construtivos tradicionais das suas regiões permitiu intervenções que diminuíram a qualidade da construção.
Os prazos exigidos para a realização dos projectos são muitas vezes reduzidos, trazendo consequências mais graves de anomalias na construção, quando acumulam com prazos de execução de obra não compatíveis com os tempos de secagem de materiais (por exemplo) trazendo novas anomalias a corrigir em fase final de obra. A extensão da garantia de obra para 10 anos é uma medida positiva na responsabilidade do sector da construção, mas a falta de alterações em toda a rede de decisão/legislação revela-se inadequada e pouco ética. Como se podem responsabilizar técnicos e empresas de construção quando as regras de concursos não permitem o exercício de boas práticas de concepção e intervenção, pelo tempo escasso de execução, nem existe a obrigatoriedade de antes da elaboração do projecto de arquitectura se fazer a inspecção e diagnóstico do edifício?
Uma reabilitação urbana demasiado alicerçada na especulação imobiliária e na transformação para o turismo veio desvirtuar o investimento nos centros históricos e urbanos, afastando as populações locais e obrigando a novas frentes de ampliação urbana, para fazer face à necessidade de habitação acessível (que é atualmente deficitária). Ou seja, em períodos em que estamos a reduzir a população e poderia estar a ser projectada a redução de perímetros urbanos para optimizar infra estruturas existentes, observa-se a alineação dessas centralidades para monofunções com as flutuações e dependências de modas de destinos turísticos inerentes. Com esta forma de actuação a perda de património é o mais evidente erro.
Como gostaria de imaginar o edificado daqui a mais 10 anos?
Espera-se que no futuro consigamos actuar sobre o edificado por forma a adequar as intervenções mais à realidade das famílias portuguesas, menos dependentes de equipamentos com os respectivos ónus de manutenção cara especializada ou substituição por descontinuidade de componentes e mudança de modelos pela indústria, intervenções mais adequadas às condições climatéricas de Portugal e não a de países nórdicos, actuações mais compatíveis com a pré-existência com valorização da autenticidade em detrimento das máscaras, intervenções que apostem mais na arquitectura por forma a atingir-se cada vez mais o conforto alicerçado nas características passivas do edifício, com melhores níveis de interoperabilidade com as engenharias.
Espera-se que o nível cultural português adquira a maturidade suficiente para que a autenticidade e a preservação do património edificado façam parte da vida dos cidadãos.
E, no caso da APRUPP, que iniciativas estão previstas para o futuro?
A APRUPP irá integrar iniciativas internacionais que promovam boas práticas de valorização e preservação de património, nomeadamente com o Brasil através do FIPA – Fórum Internacional do Património Arquitetónico Portugal / Brasil (que vai na 9ª edição a realizar no próximo ano no Maranhão), bem como a integração na recente Rede Ibérica de valorização de estruturas rurais do ponto de vista cultural e de turismo, da qual faz parte com outras associações culturais espanholas e ainda irá integrar candidaturas a fundos europeus.
A APRUPP irá manter a sua actuação em termos de promoção da formação técnica em reabilitação, actuação próxima junto de municípios e outras entidades no sentido de apoiar as boas práticas e continuará a monitorizar a evolução da reabilitação em termos de preservação do património e de medidas ligadas à sustentabilidade, nomeadamente as que se dirigem à qualificação da paisagem urbana e rural e à gestão do território, com melhoria das condições de vida das populações e acesso à cultura.