Quando no dia 28 de Abril às 11h33 as luzes se apagaram na península ibérica, o Instituto de Sistemas e Robótica da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra (FCTUC), permaneceu operacional. O instituto possui uma micro-rede eléctrica resiliente, capaz de garantir o fornecimento eléctrico a cargas críticas durante situações extremas ou catastróficas, em que ocorra falha da rede eléctrica pública, como a que aconteceu. A tecnologia desenvolvida do Departamento de Engenharia Electrotécnica e de Computadores (DEEC) da FCTUC teve “a sua prova de fogo com condições reais, conseguindo, com sucesso, fornecer electricidade às cargas críticas do edifício e funcionar de forma autónoma da rede pública”, refere a instituição.
“As micro-redes são uma tecnologia que permite ter um sistema eléctrico independente da rede eléctrica, inserido numa área geográfica específica e definida, como por exemplo um edifício, bairro ou localidade pequena. São usadas para fornecer electricidade em zonas remotas onde a infraestrutura é fraca ou inexistente, para optimizar eficiência energética, custos e integração de energia renovável e, em casos extremos, garantir o fornecimento de energia eléctrica aos clientes por si abrangidos quando tudo o resto falha”, explica Alexandre Matias Correia, estudante do mestrado em Engenharia electrotécnica ISR/FCTUC, e autor da tese de Doutoramento “Optimization anda management of microgrids to deliver high power quality in critical and disaster situations”, no âmbito da qual esta micro-rede resiliente instalada na IST foi desenvolvida.
Esta tecnologia, testada com sucesso em condições reais, opera de forma autónoma, integrando painéis fotovoltaicos, baterias, gestão de energia e carregamento bidireccional de veículos eléctricos, permitindo até 72 horas de fornecimento contínuo, substituindo os geradores de emergência a diesel.
O que se faz de revolucionário em Coimbra
A tecnologia de micro-redes eléctricas é conhecida e vem sendo desenvolvida e implementada globalmente há algumas décadas, mas o projecto da Universidade de Coimbra destaca-se pela sua ênfase na resiliência e na sua aplicação em situações extremas, adicionando-lhe características específicas como integração de veículos eléctricos (V2G ou Vehical to Grid) e capacidade regenerativa. O sistema V2G “permite alimentar a rede local através da energia armazenada em veículos eléctricos o que possibilita aumentar ainda mais a duração do fornecimento de energia eléctrica, assim como disponibilizar potência em locais onde a infraestrutura é inexistente ou foi danificada”, explica o investigador. “Usando os painéis fotovoltaicos e um sistema de gestão de cargas para recarregar baterias durante o dia”, dão lhe capacidade regenerativa, prolongando ainda mais o fornecimento às cargas críticas.
O teste de fogo do dia 28 pôs à prova o equipamento desenvolvido. “A micro-rede é dividida em três camadas: a camada física, onde estão instalados os vários equipamentos e tecnologias; a camada digital, que corre o software que faz a gestão e operação da micro-rede; e a camada de telecomunicações que faz a ponte entre o hardware e software e permite actuar e reagir às condicionantes em tempo real”, descreve Alexandre Matias Correia. “Uma coisa que se aprendeu com este ensaio foi a importância da camada das telecomunicações, pois inicialmente um lapso humano colocou em causa a comunicação entre os equipamentos e, apesar de estarem todos operacionais, foi necessária intervenção manual para iniciar a micro-rede. Esta falha foi prontamente identificada e corrigida, possibilitando o funcionamento da micro-rede, e no projecto final do sistema, já estará colmatada”, afirma o investigador.
Ao nível tecnológico “é também necessário a instalação de equipamento especializado, no que toca a inversores (que têm de ter capacidade de grid-forming), assim como de contadores com capacidade para serem controlados por software para proceder ao seccionamento da micro-rede com a rede pública e gestão dos circuitos de cargas críticas”, adianta Alexandre Matias Correia.
O software foi todo desenvolvido in-house e inclui algoritmos especializados.
Do laboratório para o mercado
A tese desenvolvida por Alexandre Matias Correia foca na optimização de micro-redes para alta qualidade de energia em cenários extremos. “A tecnologia para micro-redes já está disponível nalguns operadores do mercado da electrotécnica. Na UC a nossa inovação incide nas micro-redes resilientes, que são uma ramificação, pois existem várias tipologias como: militar, industrial, comercial… Neste momento, estimamos que a nossa tecnologia esteja com um Technology Ready Level (TRL) entre o 7 e o 8 [num índice que vai até 9]”, especifica o investigador da UC.
Estando em fase final de desenvolvimento a questão que se coloca agora, com mais ênfase, é saber o que impede a maior utilização desta tecnologia. “A maior barreira que vemos incide no desconhecimento da tecnologia, na falta de know-how especializado para a implementar e na falta de incentivo político e económico para o fazer. Existe também sempre alguma confusão com o conceito de Comunidade de Energia, mas esclarece-se que uma Comunidade de Energia não é uma micro-rede, mas todas as micro-redes conseguem funcionar como uma Comunidade de Energia”, explica Alexandre Matias Correia. Enquanto em países como os Estados Unidos da América, por exemplo, que têm intempéries frequentes (furacões, cheias, etc) estas estão bastante mais disseminadas, “precisamente por que há essa necessidade”, na Europa “ainda existem poucos exemplos, mas prevemos que o Apagão Ibérico de há uns dias venha a incidir holofotes sobre a tecnologia e possa desbloquear as barreiras económicas para a sua difusão”, adianta o investigador.
O sucesso durante o Apagão Ibérico de 28 de Abril último demonstra a robustez do sistema num cenário real de grande escala.
Exemplos pelo mundo
Tendo surgido por volta dos anos 2000, proporcionadas pelo avanço das energias renováveis e a necessidade de sistemas mais robustos em áreas remotas ou propensas a falhas na rede, as micro-redes são uma tecnologia madura em muitos aspectos, com padrões estabelecidos (como o IEEE 1547 para interconexão) e mercados crescentes. No entanto, projectos como o de Coimbra estão na vanguarda ao combinar múltiplas funcionalidades (resiliência, sustentabilidade e integração V2G) num único sistema optimizado. A pesquisa em micro-redes continua a evoluir, especialmente em áreas como inteligência artificial para gestão de energia, baterias de maior densidade e integração com redes inteligentes (smart grids).
Estes são alguns exemplos recentes de micro-redes eléctricas implementadas em vários pontos do globo:
• EUA: Base Conjunta Pearl Harbor-Hickam (JBPHH) no Havai tem em curso o projecto “PEARL” (Pacific Energy Assurance Renewables Laboratory). Este projecto tem como objectivo fornecer energia sustentável, resiliente e segura à base militar, incluindo a Guarda Nacional Aérea do Havai
• Austrália: Comunidades Remotas. Em áreas isoladas, como comunidades aborígenes no interior da Austrália, micro-redes solares com armazenamento em baterias têm sido implementadas para substituir geradores a diesel.
• Dinamarca: Ilha de Bornholm. Bornholm é um exemplo de micro-rede avançada que integra alta penetração de energias renováveis (solar e eólica) com a rede principal. O projecto é usado como laboratório para testes de redes inteligentes, o qual tem por objectivo demonstrar como estas podem estabilizar redes com grande dependência de fontes intermitentes e promover a descarbonização.
• Japão: Fukushima (Projecto de Recuperação Pós-Desastre). Após o desastre nuclear de 2011, micro-redes foram implementadas em áreas afectadas para fornecer energia confiável. Um exemplo é a cidade de Namie, onde uma micro-rede combina energia solar, baterias e hidrogénio.