O livro “Políticas de Habitação Acessível” nasce de uma viagem a Viena e de um desafio: perceber como a Europa responde à falta de habitação a preços acessíveis e que lições pode Portugal pode tirar destes exemplos. Álvaro Santos e Miguel Branco-Teixeira, analisam cidades como Amesterdão, Barcelona, Berlim, Helsínquia, Paris e Viena, e cruzam essas lições com as cinco capitais de distrito do Norte de Portugal. O resultado? Um retracto de soluções diversas e a certeza de que, em Portugal, não obstante os programas em curso, é preciso mais escala, maturidade e colaboração entre Estado, privados e municípios. Em entrevista ao CONSTRUIR, Álvaro Santos aponta a necessidade de se reduzirem burocracias, de aumentar recursos e a necessidade de integrar habitação com urbanismo e inovação na construção. Este é, sobretudo, um convite à acção: é preciso equilibrar oferta e procura, simplificar processos e mobilizar todos para uma prioridade nacional que não pode esperar.
Como surgiu este livro? Sendo certo que este é um momento oportuno para o seu lançamento.
A ideia de escrever este livro resultou de uma viagem que fiz a Viena, há cerca de um ano atrás. Sabendo que a crise habitacional que vivemos em Portugal é comum a toda a Europa, gostava de perceber como é que a Áustria, e em particular Viena, estavam a reagir a essa crise? E quais as soluções que estavam a adoptar para combater a falta de habitação a preços acessíveis, principalmente, para a população de rendimentos intermédios?
Foi deste modo que lancei o desafio ao meu colega Miguel Branco-Teixeira para estudarmos, com algum grau de profundidade, este caso de Viena e, por que não, estendê-lo também a outras cidades europeias.
Curiosamente, o presidente da Ordem dos Engenheiros da Região Norte, Bento Aires, também já tinha lançado o desafio de partilharmos o nosso conhecimento, e a experiência do trabalho prático junto dos municípios portugueses, através de uma publicação sobre o tema da habitação.
Foi assim que decidimos juntar aos casos de estudo europeus, a análise às cinco capitais de distrito do Norte de Portugal, indo plenamente ao encontro da pretensão da Ordem dos Engenheiros da Região Norte que assim carimbou esta publicação com a sua chancela.
Que lições principais podemos retirar dessa análise comparativa?
O nosso livro procura extrair conclusões e recomendações para o contexto português, a partir de uma análise de boas práticas nacionais e internacionais no domínio das políticas de habitação.
Os estudos de caso internacionais abordados (Amesterdão, Barcelona, Berlim, Helsínquia, Paris e Viena) evidenciam a diversidade de abordagens destinadas a debelar estes problemas. Por exemplo, em Amesterdão, os recursos públicos aliam-se aos privados e ao terceiro sector no fomento da habitação a preços acessíveis. Recorrendo a parcerias público-privadas.
Em Barcelona, foi criado um observatório de âmbito metropolitano mandatado para o recenseamento exaustivo de fogos devolutos e do parque habitacional do Estado, além de promover mecanismos de intermediação entre inquilinos e proprietários.
Em Berlim, há uma aposta deliberada no estímulo a cooperativas de habitação que beneficiam do direito de preferência em áreas previamente definidas. Além da criativa reabilitação de edifícios, o que permite ampliar o número de alojamentos reduzindo a dimensão média de cada um.
Em Helsínquia, existe um inovador “direito à ocupação”, a meio caminho entre a propriedade e o arrendamento: a casa pertence ao município ou a associações sem fins lucrativos, mas o arrendatário pode vender o seu direito àquela habitação.
Em Paris, escritórios considerados obsoletos são transformados em residências. E há a figura do Fundo Fundiário e Cooperativo, para apoiar construção a custos controlados. Coexistindo com experiências socialmente inovadoras, como a co-habitação, as eco-habitações ou as habitações modulares.
Em Viena, mais de metade dos fogos insere-se em modelos de habitação social ou acessível, correspondendo à forte tradição que há muito ali vigora. São prioritários os apoios dirigidos à oferta, não à procura. Começando por uma política fundiária eficaz, baseada numa elevada dotação de solo público.
E porquê o foco na comparação das soluções de Habitação Acessível desta seleção de países europeus?
Fundamentalmente, porque os desafios enfrentados pela generalidade dos países europeus são comuns à realidade nacional e são por demais conhecidos.
Um crescente desequilíbrio entre a oferta e a procura de habitação, com origem em factores económicos, financeiros e demográficos diversificados, tem exacerbado os custos associados à aquisição e ao arrendamento de habitação condigna, tornando-a cada vez mais inacessível para uma parcela crescente da população. O ritmo de construção de novos alojamentos tem-se revelado insuficiente para acompanhar esta tendência, tornando o stock de habitação disponível a um preço acessível cada vez mais limitado, facto que agrava ainda mais o problema. Como consequência, aumentam as situações extremas de vulnerabilidade, incluindo a sobreocupação de alojamentos, a degradação do parque, despejos motivados pela incapacidade de pagar a renda ou a prestação da casa e um incremento considerável do número de pessoas em situação de sem-abrigo.
Em Portugal não faltam medidas, mas é preciso acelerar o seu impacto
Que políticas ou estratégias de outros países europeus destacadas no livro poderiam ser adaptadas com sucesso ao contexto português?
Os estudos de caso internacionais analisados evidenciam uma diversidade de soluções que podem ser agrupadas em três conjuntos distintos.
No primeiro conjunto, destacam-se as iniciativas destinadas a erradicar as situações de maior vulnerabilidade. Estas apresentam-se extremamente diversificadas, verificando-se que as soluções clássicas de construção de habitação pública municipal com rendas fortemente subsidiadas, presentes em maior ou menor escala na generalidade das cidades europeias, têm vindo a revelar-se insuficientes face ao avolumar dos problemas e à escassez de recursos disponíveis.
O segundo conjunto de soluções relaciona-se com a promoção de habitação acessível, tanto para aquisição como para arrendamento. Este tipo de habitação destina-se aos estratos de rendimentos intermédios, superiores aos valores elegíveis para habitação social, mas inferiores aos necessários para arrendar ou adquirir casa numa lógica de mercado, sem que tal comprometa seriamente a qualidade de vida dos residentes.
O terceiro conjunto de propostas consiste no estímulo à construção de novos alojamentos, de modo a acompanhar a evolução da procura e assim manter os preços em valores aceitáveis. Algumas das medidas referidas no livro inscrevem-se neste objectivo, em particular a cedência de terrenos públicos e as deduções fiscais, subvenções e apoios ao financiamento.
Quais considera serem os maiores obstáculos para implementar políticas de habitação acessível eficazes em Portugal?
A análise que fazemos no nosso livro revela que, apesar de não faltarem em Portugal soluções semelhantes às analisadas nos estudos de caso internacionais, estas medidas foram geralmente introduzidas há relativamente pouco tempo. Como consequência, apresentam-se mais frágeis do ponto de vista da escala de intervenção e grau de maturidade, pelo que diversas medidas poderão ser tomadas no sentido de acelerar o seu impacto.
Tais como?
Em primeiro lugar, o papel dos municípios na definição e operacionalização das políticas de habitação deverá ser reforçado. Até há relativamente pouco tempo, apenas as autarquias de maior dimensão desenvolviam uma intervenção significativa no sector da habitação, geralmente concentrada na gestão do parque público, por vezes integrada em direcções de serviços de acção social mais abrangentes.
Em segundo lugar, é hoje consensual que os recursos públicos disponíveis para a habitação, tradicionalmente concentrados nas situações de maior vulnerabilidade, revelam-se insuficientes face aos desafios surgidos ao longo da última década. Tais desafios afectam directamente segmentos alargados da sociedade, pelo que requerem, não apenas abordagens diversificadas quanto às modalidades de intervenção e às fontes de financiamento, como um contributo cada vez mais activo dos actores não-públicos, nomeadamente do sector privado, na definição e execução das políticas de habitação.
Um terceiro aspecto relevante para a superação dos problemas associados à acessibilidade da habitação relaciona-se com a articulação entre as políticas de habitação e outras dimensões da intervenção pública, com destaque para o urbanismo e ordenamento do território, a política de solos e a reabilitação urbana. As Cartas Municipais de Habitação, instrumento criado ao abrigo da Lei de Bases da Habitação, poderão constituir o catalisador desta mudança.
Um quarto aspecto fundamental relaciona-se com a transformação da indústria da construção, que deverá introduzir elementos de inovação nos seus produtos, processos produtivos e modalidades de gestão, de modo a superar os actuais desafios colocados pela inflação, pela reduzida disponibilidade de profissionais qualificados e pelas exigências de eficiência energética e combate à pobreza energética.
Exemplos a Norte para replicar a nível nacional
Há algum caso de sucesso nestes cinco municípios portugueses analisados que possa servir de modelo para outras regiões?
O nosso livro demonstra que o poder local ampliou consideravelmente o conjunto de instrumentos dedicados à habitação, seja através do alargamento dos seus objectivos às necessidades dos estratos intermédios (por via do arrendamento acessível), seja enquadrando as políticas de habitação em estratégias mais amplas, frequentemente centradas na reabilitação urbana.
Por outro lado, a centralidade da habitação nas políticas autárquicas é hoje visível para além das duas áreas metropolitanas, encontrando-se cada vez mais presente nas estratégias das cidades médias, e mesmo de concelhos de menor dimensão.
Mas, para além das opções que concretizam ou reproduzem modelos de âmbito nacional, é possível encontrar exemplos de inovação social e institucional, incluindo as centradas no papel das populações no desenho das soluções mais adequadas (“Assembleias de moradores”, em Braga). Outras propostas procuram articular instrumento de natureza diferente, como habitação e ordenamento do território (perequações e “zonamento inclusivo”, no Porto), ou fiscalidade e reabilitação urbana (ORU e “zonas de pressão urbanística”, em Bragança, Vila Real e Viana do Castelo).
Contudo, uma das principais conclusões a retirar deste livro é que existe ainda um longo caminho a percorrer em direcção a um modelo de provisão da habitação mais acessível para a generalidade da população. Este percurso é particularmente exigente no segmento de arrendamento, facto que provavelmente implicará medidas mais ambiciosas do que as tomadas até ao momento.
Qual deveria ser o equilíbrio entre a intervenção do Estado e a iniciativa privada na resolução da crise de habitação acessível? Colocamos mais a óptica, e os apoios, do lado da “procura” ou deveríamos olhar mais para os apoios do lado da “oferta”?
Eu diria que a resolução do problema da habitação não pode ser apenas acometida à intervenção pública, sendo fulcral integrar o sector privado e cooperativo neste propósito.
Num quadro de reconhecimento e assunção de que os recursos financeiros públicos são finitos e que devem ser geridos com transparência e equidade, as entidades públicas e privadas, o 3º Sector (IPSS, Misericórdias, associações, cooperativas, etc.) e os cidadãos em geral, devem ser convocados para esta mobilização de interesses e de vontades na partilha de informação, na análise e discussão dos problemas comuns e na identificação e execução das melhores soluções habitacionais que possam ser exequíveis no nosso País.
Para isso, considero ser fundamental actuar em duas dimensões absolutamente impactantes: Simplificar e reduzir a excessiva morosidade dos processos de licenciamento e, segundo, promover uma política fiscal justa, equilibrada e competitiva no domínio da habitação.
Como avalia os programas actuais do governo português, como o “Programa de Arrendamento Acessível” ou o “Primeiro Direito”, quanto ao seu ritmo de implementação, bem como ao impacto esperado?
O “Programa de Arrendamento Acessível” e o “Primeiro Direito” foram já lançados em 2018, no âmbito da então designada Nova Geração de Políticas de Habitação, portanto ainda com os governos anteriores.
Os resultados do “Programa de Arrendamento Acessível” foram, infelizmente, muito reduzidos, com cerca de 2 mil contratados, ao longo de 5 anos de existência. Entretanto, já foi rebaptizado para Programa de Apoio ao Arrendamento, mas desconhecem-se resultados concretos.
Quanto ao “Programa 1º Direito” tem sido levado a cabo pelos Municípios portugueses que, num primeiro momento, elaboraram as suas Estratégias Locais de Habitação, culminando na apresentação de candidaturas para construção ou reabilitação de 59 mil habitações. Essas operações estão em curso, embora ainda com uma taxa de execução muito baixa.
Devo sublinhar que a resposta dos municípios portugueses que, para além das 26 mil soluções previstas no PRR, apresentaram 59 mil candidaturas, releva bem a sua ambição e vontade de contribuir para a resolução da crise habitacional em Portugal.
Contudo, e apesar dos Municípios estarem a fazer um trabalho incrível, a elevada burocracia imposta e os timings muito curtos para a sua concretização estão a criar muitas dificuldades que, sinceramente, espero que possam ser ultrapassadas para não termos de devolver dinheiro a Bruxelas.
Por outro lado, se o PRR financia 26 mil habitações, o actual Governo já garantiu o financiamento das 33 mil candidaturas restantes, com um reforço de 2,8 mil milhões de euros através do Orçamento de Estado, até 2030. Trata-se do maior investimento público em Habitação dos últimos 50 anos em Portugal.
Olhando para uma perspectiva de 10 anos, que mudanças prevê no panorama da habitação acessível?
Temos de ter consciência de que o problema da habitação não se vai resolver de um dia para o outro, infelizmente. Por isso, devemos assumir a Habitação como uma absoluta prioridade nacional. Esta é a nossa “guerra”. E para problemas excepcionais, precisamos de soluções excepcionais. O nosso País precisa de produzir cerca de 50 a 60 mil fogos por ano. Só assim será possível combater eficazmente a crise habitacional. Não tenhamos dúvidas disso! Este é um desafio que nos deve mobilizar a todos, não apenas governantes, não apenas políticos, mas entidades públicas, empresas privadas e a própria sociedade civil.