Construção em Solo Rústico? Não Leia só as Gordas!
“A reclassificação para solo urbano está condicionada pela letra da lei à prossecução do interesse público, que deve ser o início e fim desta reclassificação. (…) Assim para passar um terreno rústico a urbano será necessário justificar essa passagem à luz de necessidades ambientais, patrimoniais, económicas e sociais gerais e não apenas as do Sr. João que tem o terreno parado e gostava de vendê-lo urbano pelo dobro do preço”

Já deve ter ouvido falar sobre a “nova lei dos solos” que permite “a construção em terrenos rústicos” pela “sua passagem a terrenos urbanos”. Com a entrada em vigor do Decreto-Lei 117/2024 gerou-se um frenesim em torno desta possibilidade. Especialistas de café e gordas animadoras em notícias um pouco por todo o lado apressaram-se a divulgar as boas novas, conduzindo, na nossa opinião, a uma perigosa desinformação e distorção desta “nova lei”.
Assim, por via deste artigo pretende dar-se a conhecer as mais recentes alterações ao Regime Jurídico dos Instrumentos de Gestão Territorial (RJIGT) protagonizadas pelo Decreto-Lei 117/2024 e esclarecer a admissibilidade de passagem de rústicos a urbanos com possibilidade de construção. Ora atente.
O Decreto-Lei 117/2024 visa responder às atuais e crescentes necessidades de habitação e parte de uma lei elementar sob a qual todos nos regemos há milhares de anos – a lei da oferta e da procura. Entendeu o legislador que se fosse criado mais território apto à edificação (solo urbano) haveria mais construção e havendo mais construção o preço do metro quadrado forçosamente seria ajustado, baixando, e respondendo-se, pese embora não em exclusivo, às necessidades de habitação da nossa população.
Posto isto, estabeleceu-se um regime especial de reclassificação do solo rústico para solo urbano. Por via deste regime, terrenos rústicos podem passar a urbanos, permitindo-se neles a construção. Sucede que, à vontade não é à vontadinha e, portanto, este regime é temporário, excecional e obedece a requisitos muito apertados. É esta excecionalidade que cremos não estar a ser devidamente desenvolvida e informada. Vamos esclarecer?
Quando é que é admitida a reclassificação?
A reclassificação para solo urbano está condicionada pela letra da lei à prossecução do interesse público, que deve ser o início e fim desta reclassificação.
A definição de interesse público é largamente desenvolvida entre juristas e querendo poderá debruçar-se aprofundadamente sobre o tema. Para o que aqui releva, traçamos a definição deste conceito por oposição, valendo a nota de que um interesse público é um interesse diferente de um interesse individual e egoísta de um só indivíduo.
Assim para passar um terreno rústico a urbano será necessário justificar essa passagem à luz de necessidades ambientais, patrimoniais, económicas e sociais gerais e não apenas as do Sr. João que tem o terreno parado e gostava de vendê-lo urbano pelo dobro do preço.
Qualquer solo é elegível para a reclassificação?
Não, o processo de reclassificação obedece a uma série de requisitos e condicionantes.
Exige-se primeiramente que seja assegurada a consolidação da área urbana. As cidades e aglomerados populacionais encontra-se minimamente organizados e concentrados. Não se pretende que por via da reclassificação sejam criados aglomerados malhados e dispersos sem serviços e infraestruturas de apoio. A reclassificação deve ser organizada e harmoniosa com a realidade existente.
A criação de infraestruturas, equipamentos e espaços verdes ao serviço dos solos reclassificados é inclusive um outro requisito para a admissibilidade deste procedimento.
Existem também algumas condicionantes relativas à proteção de espaços, como os espaços incluídos na Reserva Ecológica Nacional, Reserva Agrícola Nacional ou em Domínio Público Marítimo.
Finalmente, a reclassificação exige que pelo menos 70% da área de construção se destine a habitação pública ou de valor moderado.
Pedido de reclassificação?
Aqui chegado já entendeu que a reclassificação é excecional, condicionada e que serve propósitos coletivos. Legitimamente perguntar-nos-á “estando o meu terreno rústico de acordo com as condicionantes impostas e visando por exemplo a construção de um prédio onde vão habitar dezenas de famílias, não prosseguindo, portanto, um interesse meramente egoísta, posso avançar com um pedido à Câmara?”
A reclassificação é proposta pela Câmara Municipal e, portanto, não depende de um pedido ou impulso do particular. A Câmara Municipal, consciente das necessidades de habitação próprias da sua população equacionará esta hipótese de reclassificação, selecionando as áreas adequadas ao efeito.
Querendo a Câmara Municipal avançar com a reclassificação a área proposta atentará à malha urbana existente e procurará um impacto ecológico e urbanístico mínimo. Esta aferição é feita necessariamente por urbanistas ao serviço do município, não sendo, à partida compatível com iniciativas particulares.
A reclassificação é, portanto, uma proposta da Câmara Municipal, poderá ter a sorte de ver o seu terreno incluído numa área de reclassificação- ou não.
Concluímos assim que a ideia largamente difundida de que agora se pode construir livremente em solo rústico é uma simplificação perigosa e excessiva da realidade legislativa em vigor. A reclassificação para solo urbano é condicionada, excecional e visa responder a necessidades de habitação, não estando aberto um caminho para uma urbanização descontrolada, lucrativa e desatenta.
Esperamos que o presente artigo tenha sido ilustrativo desta nova realidade jurídica, permitindo-lhe um conhecimento sério e informado sobre este tema.
Não leia só as gordas!
NOTA: A autora escreve segundo o Novo Acordo Ortográfico