Alterações ao regime da gestão territorial e corrupção: O decreto-lei Homem-Aranha
Estas alterações ao RJIGT vêm dar aos municípios – em particular, às assembleias municipais – a faculdade de reclassificarem solos rústicos como urbanos/urbanizáveis, com o propósito de se aumentar a oferta de habitação e, por essa via, fazer baixar a pressão sobre os respetivos preços
AndreZConceicao e MonicaLemos
André Zibaia Conceição e Mónica Lemos, advogados da Sociedade de Advogados Franco Zibaia
O recentemente aprovado Decreto-Lei n.º 117/2024, de 30 de dezembro, que entrará em vigor no próximo dia 29 de janeiro, vem introduzir alterações ao Regime Jurídico dos Instrumentos de Gestão Territorial (“RJIGT”) e tem suscitado acesa polémica e coro de críticas. Aliás, estas alterações têm sido objeto de cartas abertas, múltiplos artigos de opinião e de tomadas de posição públicas de diversa ordem, tendo inclusivamente sido suscitada a apreciação parlamentar, a pedido do BE, do PCP, do Livre e do PAN.
Em suma, estas alterações ao RJIGT vêm dar aos municípios – em particular, às assembleias municipais – a faculdade de reclassificarem solos rústicos como urbanos/urbanizáveis, com o propósito de se aumentar a oferta de habitação e, por essa via, fazer baixar a pressão sobre os respetivos preços.
Se, por um lado, há quem veja estas alterações como um passo certo no sentido de cumprir estes objetivos nobres e consensuais, alinhados com a legitimidade democrática e autonomia municipais, outros há que veem estas alterações como um potenciador de acrescidos riscos para o ordenamento do território, para o ambiente e para a agricultura.
Parecem recear, em suma, uma utilização perniciosa do regime agora proposto e que se desvirtuem os objetivos dos mecanismos legais criados pelo Decreto-Lei n.º 117/2024, de 30 de dezembro, seja inadvertidamente, por impreparação técnica, seja deliberadamente, associada a fenómenos de corrupção.
Independentemente da questão da adequação da solução proposta (a possibilidade de construir em solos hoje classificados como rústicos) para o problema identificado (a falta de habitação a preços suportáveis), sobre a qual não nos debruçaremos nesta sede, é importante analisar de que modo estas alterações ao RJIGT salvaguardam os interesses e as políticas públicas em presença das potenciais “malandrices” decorrentes de outras prioridades privadas ou sectoriais.
Antecipando um pouco as conclusões, não nos parece de todo evidente que estas alterações tragam um acréscimo sensível do risco de corrupção das decisões públicas sobre esta matéria.
Desde logo, os receios demonstrados parecem presumir que uma decisão de cariz local é mais permeável à corrupção do que decisões centralizadas e tomadas a coberto de instituições do Estado central, presunção que não nos parece particularmente fundada. Haverá bons e maus exemplos de ambos os lados. Não nos poderemos esquecer, no entanto, que a legitimidade democrática está tendencialmente mais próxima dos decisores locais (membros das câmaras municipais, que propõem as alterações e das assembleias municipais, que as aprovam) do que no caso dos decisores no Estado central – tipicamente, dirigentes não eleitos.
A isto acresce a tendencial maior proximidade entre os decisores locais e as necessidades específicas das respetivas populações, assim como a existência de um conjunto de indicadores e de dados acessíveis para decisões técnicas mais competentes e adequadas (v.g. Observatório do Ordenamento do Território e do Urbanismo, da Direção-Geral do Território).
O próprio preâmbulo desta alteração ao RJIGT aparenta antecipar estas questões, ao prever que “o exercício excecional de reclassificação é legitimado por deliberação da assembleia municipal, sob proposta da câmara municipal, refletindo, assim, um processo de decisão colegial, transparente e suscetível de integral escrutínio, sujeito à pluralidade de posições que necessariamente acompanham a discussão em sede de assembleia municipal”.
Ou seja: ao exigir um processo aberto, discutido, transparente, plural, próximo dos seus destinatários (territorialmente) e representativo, a reclassificação dos solos não fica nas mãos de um grupo limitado de decisores, sendo sujeito necessariamente a debate, contraditório e divulgação públicos.
Por outro lado, não nos podemos esquecer que os “traumas” de um passado com alguns maus exemplos de atropelos urbanísticos decorrentes de especulação imobiliária excessiva e da permeabilidade de alguns poderes públicos locais a interesses pouco transparentes, conhecem hoje uma realidade de mecanismos anticorrupção muito distintos daqueles que existiam no passado.
O contexto atual é de obrigação de existência de canais de denúncia nas autarquias locais, de exigência de cumprimento do regime geral de proteção de denunciantes de infrações (RGPDI ou whistleblowing), bem como do regime geral da prevenção da corrupção (RGPC), de instalação do Mecanismo Nacional Anticorrupção, que tem por missão promover a transparência e a integridade na ação pública e garantir a efetividade de políticas de prevenção da corrupção e de infrações conexas.
Como já foi assinalado pela Associação Nacional de Assembleias Municipais (ANAM), a implementação deste novo regime vai exigir um esforço importante na capacitação do poder local.
Acreditamos, no entanto, que as oportunidades que surgem podem abrir o caminho a uma melhoria efetiva do mercado da habitação em Portugal e que o atual contexto jurídico e o rumo futuro serão no sentido de uma acrescida transparência e responsabilização dos decisores locais, para maior tranquilidade das vozes mais céticas e catastrofistas.
É caso para dizer, citando a popular frase dos livros de banda-desenhada: “With great power comes great responsibility”.
Nota: Os autores escrevem de acordo com o Novo Acordo Ortográfico