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    Opinião

    A persistente desvalorização do espaço público

    “O incremento das políticas de ordenamento do território” permitiu “aumentar a oferta de habitação, em muitos casos de forma notável, mas quase sempre sem possibilidade de implementação das políticas públicas que apontavam no sentido da promoção das infraestruturas e de equipamentos suficientes; impedindo-se, por conseguinte, uma redestribuição socio-espacial nas estruturas urbanas”

    Opinião

    A persistente desvalorização do espaço público

    “O incremento das políticas de ordenamento do território” permitiu “aumentar a oferta de habitação, em muitos casos de forma notável, mas quase sempre sem possibilidade de implementação das políticas públicas que apontavam no sentido da promoção das infraestruturas e de equipamentos suficientes; impedindo-se, por conseguinte, uma redestribuição socio-espacial nas estruturas urbanas”

    Diogo Gaspar
    Sobre o autor
    Diogo Gaspar

    Escrevemos este texto semanas após surgirem inéditos confrontos e situações de violência na área da Grande Lisboa e da ocorrência de inundações trágicas em Valência, Espanha, responsáveis por mais de 200 mortes. Estes dois acontecimentos, que, aparentemente, não têm nenhuma relação, permitirão, pelo menos, uma perspetiva em comum: a circunstância de o urbanismo e do ordenamento dos espaços que habitamos poderem ser decisivos nas nossas vidas. À primeira vista poderá parecer que estamos a dizer uma generalidade ou uma verdade de La Palice, e talvez o seja. Ainda assim, pensamos que vale a pena chamar a atenção para essa relação de influência, que parece ainda não merecer a devida atenção.

    A atividade de construção de edifícios é regulada por diversos instrumentos, que devem permitir a conciliação da urbanização do solo quer com a preservação de valores ambientais – conservando o capital natural, com os serviços fundamentais que presta – como com a promoção de valores sociais – assegurando o acesso a infraestruturas e serviços de interesse geral, promovendo a conectividade e a coesão sociocultural.

    Por isso, existem regimes condicionantes do uso do solo, os quais, uma vez transpostos e concretizados em programas e planos territoriais, formam o quadro no qual as entidades administrativas – entre as quais os municípios têm o papel de protagonistas – permitem a realização de uma determinada operação urbanística. É, pois, dentro desse quadro que lhes cabe tomar decisões, acautelando a capacidade das infraestruturas e serviços gerais existentes, assim como provendo a adequada inserção dos edifícios no ambiente urbano e na paisagem.

    No passado, muitos erros foram cometidos na forma como se urbanizou o território. No princípio da segunda metade do século XX, o país viveu fenómenos de “explosão urbana” nas áreas de Lisboa e Porto, sendo que, de forma geral, ao longo dos anos seguintes, as principais cidades do país experimentaram uma acentuada e precipitada transformação. O incremento das políticas de ordenamento do território no período democrático mudou as condições desse processo, mas os poderes públicos continuaram muito pressionados para a promoção de habitação (e, indiretamente, para a dinamização da economia); confrontando-se muitas vezes, também, com poucos recursos para a adqueada implementação dos novos instrumentos de planeamento.

    No resultado dessa evolução, foi possível aumentar a oferta de habitação, em muitos casos de forma notável, mas quase sempre sem possibilidade de implementação das políticas públicas que apontavam no sentido da promoção das infraestruturas e de equipamentos suficientes; impedindo-se, por conseguinte, uma redestribuição socio-espacial nas estruturas urbanas. Nas duas metrópoles do país, essa circunstância criou assimetrias mais profundas, dando origem a “cidades-centro”, com espaços públicos de qualidade, e “cidades-periferia”, marcadas, precisamente, pela falta de equipamentos coletivos e de infraestruturas. Assim é a situação, ainda hoje, das áreas da Grande Lisboa que estiveram no centro das notícias de tumultos no final de outubro passado.

    No passado, muitos erros foram cometidos na forma como se urbanizou o território. No princípio da segunda metade do século XX, o país viveu fenómenos de “explosão urbana” nas áreas de Lisboa e Porto, sendo que, de forma geral, ao longo dos anos seguintes, as principais cidades do país experimentaram uma acentuada e precipitada transformação

    Pois bem, tendo presente a experiência do passado, é pertinente perguntar qual é a situação atual, no contexto de uma “crise” na habitação, e em tempos em que cresce também o peso da população imigrante no país, acarretando novos desafios de integração e coesão social, para lá do desafio generalizado e sem fronteiras das alterações climáticas.

    Na verdade, não faltam exemplos de situações, especialmente nas áreas de maior concentração populacional, no Norte, Centro e Áreas Metropolitanas de Lisboa e Porto, em que a “nova” urgência de construir em que vivemos está a consumir áreas verdes e de fruição coletiva, em muitos casos contra a vontade das populações locais. Fenómeno que leva, como ocorreu no passado, ao sacrifício de espaços essenciais na resiliência das cidades aos eventos climáticos extremos e à proteção do ambiente urbano, assim como de espaços destinados a equipamentos e, de um modo geral, à socialização. Em certas situações, sobretudo em bairros de cidades periféricas já densamente urbanizados, assiste-se ao risco de desaparecimento dos seus últimos “pulmões”; noutras situações, como sucede em Lisboa, desperdiça-se, muitas vezes, a oportunidade de os criar.

    Apesar da evolução das políticas, parecem ainda vagas as perspetivas de ordenamento do território quando a Administração atua, no uso da discricionariedade que tem, o que parece ser alimentado por uma deficiente execução dos instrumentos de planeamento, em que o nível de execução promovida, a nível particular, não é acompanhada da mobilização devida dos instrumentos de planeamento, a nível público.

    No discurso político dos problemas da habitação e da cidade, aqueles que têm visões mais sociais apontam baterias às iniciativas flexibilizadoras no arrendamento e ao crescimento do turismo; os mais liberais, propugnam por condições mais vantajosas para o incremento, por via privada, da oferta de habitação; mas o planeamento, as funções dos espaços da cidade e a qualidade do espaço público parecem sistematicamente ignoradas no debate político.

    Apesar dos anos decorridos, das más experiências do passado, e dos desafios que atravessamos e nos deixam tantas incertezas, parece que os temas do planeamento e do urbanismo ainda não foram merecedores do consenso político que permitiria uma verdadeira gestão integrada dos territórios (o mesmo nível de consenso que propiciou o desenvolvimento de instituições decisivas da nossa democracia, como o serviço nacional de saúde ou a escola pública). É fundamental que esse consenso se crie, e que traga uma mudança de paradigma; mudança que certamente obrigará à realização de investimentos e à aposta em novos recursos, à mobilização de alterações legislativas e a uma mudança de cultura política e administrativa. Mas só assim se poderá acautelar que, com o crescimento e densificação das malhas urbanas, também se “faça cidade”. Só assim se poderá valorizar devidamente o espaço público, seja na sua contribuição para a qualidade do ambiente urbano ou para a promoção do encontro, evitando todas as formas de “gueto” e, no fim de contas, impedindo o agravamento das desigualdades, incluindo na própria forma de resiliência aos imprevisíveis riscos do clima. A experiência dos acontecimentos mais recentes assim o deveria indicar.

    NOTA: O Autor escreve segundo o Novo Acordo Ortográfico

    Sobre o autorDiogo Gaspar

    Diogo Gaspar

    Diogo Gaspar, advogado da área de Direito Público da Cuatrecasas
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