“Os arquitectos que se habituem porque vão ter de aprender a trabalhar com outros materiais e com outras soluções, que não o betão e o tijolo”
A arquitectura vive de mudanças e impõem mudanças, mas nunca como hoje esta assunção foi tão verdadeira. A discussão sobre a maior utilização da madeira na construção e as mudanças que ela origina deu-nos o pretexto perfeito para falar com o arquitecto Luís Rebelo de Andrade e rever parte da sua obra onde a madeira é a grande protagonista. Mas mais do que o passado falámos do futuro, do papel e das responsabilidades da profissão, da pesquisa e utilização de novos materiais, às vezes “com carácter experimental”, confessa
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(Esta entrevista foi originalmente publicada no suplemento de Arquitectura TRAÇO, de Setembro)
De onde lhe vem esta reverência à utilização da madeira nos seus projectos?
Hoje fala-se muito da sustentabilidade e de facto a madeira é dos materiais renováveis mais interessantes e importantes. Portugal sempre teve um certo estigma na utilização da madeira face às amplitudes térmicas e à sua manutenção. Embora eu ache que isso se deve muitas vezes, não com a utilização da madeira, mas com a utilização errada da madeira. E, portanto, desde cedo que comecei a investir no conhecimento da construção em madeira. Realizámos Pedras Salgadas, com as eco houses e as snake houses. Usámos muita criptoméria também num projecto que fizemos em Longroiva. Temos algum trabalho feito nesta matéria.
Entretanto, aqui há uns seis anos realizámos uma casa que surge, por uma série de circunstâncias, designadamente de análise do projecto, do programa, do sítio e do local, como, se não o primeiro, seguramente um dos primeiros projectos em Portugal em CLT.
Está a falar do projecto da “Casa 3000”?
A “Casa 3000”, que é um projecto fruto das circunstâncias. Havia pouca disponibilidade de pessoas para trabalhar na construção, a casa era completamente deslocada de qualquer centro urbano, tinha problemas de abastecimento de energia e água, o ponto de energia mais próximo estava a uma distância de 2 km, e este conjunto de circunstâncias levou-nos a fazer uma casa 100% auto-suficiente. Ou quase porque, obviamente, que não existem casas 100% auto-suficiente, haverá sempre um pequeno gerador para os dias, como se costuma dizer, para os dias de festa. E decidimos construir em CLT.
Essa foi uma decisão fácil?
Eu desde sempre defendi esta tecnologia e o tempo tem vindo a dar-me razão. Na altura era uma tecnologia pouco conhecida em Portugal e se eu falasse com um engenheiro de estruturas, parecia que lhe estava a tirar o pão da boca, porque ele não sabia fazer os cálculos. Se estivesse a falar com um empreiteiro este desvaloriza por completamente a solução, porque fazia comparações demasiadamente simples relativamente aos custos. Ou seja, se tiver de comparar exclusivamente o custo do CLT com outra mais tradicional até pode ser uma construção que é mais cara. Mas esta não é a verdadeira questão.
A responsabilidade da arquitectura
E qual é?
A construção em CLT permite várias coisas. Desde logo fazer uma construção em seco, reduzindo brutalmente o número de operações dentro de uma obra. Os painéis vêm cortados e tudo é milimétrico. É uma montagem rigorosa e muito eficaz, com um número muito reduzido de pessoas em obra. É preciso reconhecer que Portugal tem hoje em várias áreas, e não só na construção, um grave problema com a contratação de pessoal especializado.
O CLT é uma tecnologia que é a favor dos novos tempos, no sentido em que permite aumentar substancialmente os volumes de pré-fabricação numa obra, permite controlar melhor os custos e obter melhores resultados em termos de custo final da obra e em termos de prazo de execução. Traz uma série de vantagens adicionais. Por exemplo, muitas vezes fala-se do perigo do fogo, ora também nesse aspecto o CLT é uma vantagem porque sendo madeira laminada, cruzada e colada é uma madeira que não arde, ela carboniza, reduzindo substancialmente o risco de incêndio. Aumenta substancialmente a segurança a sísmica do edifício, porque é um material que, como sabemos, bastante flexível e tem uma resistência melhor. Ao nível do conforto a madeira melhora o conforto acústico e térmico. Eu tenho defendido que a construção em Portugal vai seguir o caminho da pré-fabricação, é inevitável. E se os portugueses não perceberem isso agora, vão perceber daqui a uns tempos, quando acabar a guerra na Ucrânia e esta iniciar a sua reconstrução. Aí iremos assistir a um êxodo de trabalhadores e de empresas de construção.
Mas não sente que as coisas estão a evoluir para uma maior utilização do CLT e da pré-fabricação na construção, no geral?
Sem dúvida. Hoje as empresas começam de facto a aperceber-se das vantagens, a estudar e a envolverem-se no processo. Estão a formar-se uma série de engenheiros com conhecimento do cálculo, que é fundamental, já que a construção em madeira, como sabemos, não permite grandes coeficientes de cagaço. Eu estou completamente convencido que o caminho vai no sentido da pré-fabricação, seja pré-fabricação com CLT ou seja pré-fabricação com outras tecnologias, que há mais de 100 tecnologias diferentes no mundo quando falamos de pré-fabricação. Este é o caminho que a construção em Portugal vai seguir e os arquitectos que se habituem porque vão ter de aprender a trabalhar com outros materiais e com outras soluções que não o betão e o tijolo.
A formação é uma preocupação no seu atelier?
Claro que é! Nós temos esta preocupação há muito tempo. A sustentabilidade não pode ser uma palavra vã… um cliché. A sustentabilidade é algo que é muito real. E é fundamental que nós, enquanto arquitectos, percebamos que temos uma responsabilidade nesta matéria. O que é uma pena é que assistimos a um autismo muito grande por parte dos nossos governantes relativamente aos problemas da arquitectura e não ouvimos a nossa Ordem a intervir nos momentos dos grandes fogos ou das grandes cheias, nos momentos que, no fundo, são resultado o resultado do mau planeamento e do mau urbanismo. Vamos ter, sem dúvida, que caminhar no sentido da pré-fabricação, esta é uma questão que para mim não traz qualquer tipo de dúvida. Inclusive, estamos a desenvolver uma série de projectos nesta área, o que nos obriga a trabalhar no nosso atelier nuns moldes diferentes do que se trabalhava aqui há uns anos. Hoje todo o atelier está a trabalhar em BIM e procurámos equipas de engenharia que nos acompanhem nessa forma de trabalhar, porque o projecto tem que de ter um grande rigor. Mas para isso é necessário que os empresários na área imobiliária sejam capazes de pagar aos arquitectos aquilo que lhes é devido para conseguirem desenvolver bons projectos. Não vamos a concursos públicos pura e simplesmente e salvo raríssimas excepções porque são escandalosamente mal pagos e depois as equipas que ganham são equipas mal preparadas, com projectos que estão mal elaborados e carregados de indefinições, o que origina os grandes desvios nas obras e nos valores finais de investimento. Não há milagres. A única forma de reduzir os valores da construção é seguir o caminho da pré-fabricação, não é exigir aos arquitectos que estão no princípio da cadeia que façam “baratinho”, porque esse “baratinho” depois sai caro.
O regresso ao CLT
Nos vários projectos que tem em curso volta a utilizar o CLT em algum deles?
Neste momento estamos numa face em que ainda é difícil convencer os nossos clientes, os nossos promotores que CLT é uma boa solução, mas estamos convencidos ao longo dos próximos dois a três anos já vamos ter uns milhares largos de metros quadrados construídos nesta tecnologia. Não tenho dúvidas, estamos a preparar vários projectos nesse sentido
Começou com a “Casa 3000”. Mudaria alguma coisa do que fez nesta que foi a sua primeira experiência com o CLT?
Não mudaria nada. É um projecto do qual nos orgulhamos muito no ateliê, como todos os projectos que fazemos. Não olhamos para trás, olhamos para o projecto a seguir. A nossa paixão é o projecto que temos a seguir, os outros ficam na história. Tentamos fazer todos os projectos com a mão direita, mas há alguns projectos que nos saem com a mão esquerda, mas mesmos nesses tenho tido a sorte de poder vir a emendar. Temos uma grande preocupação em olhar para trás e não nos envergonharmos daquilo que colocamos na paisagem. Eu costumo dizer que nós, arquitectos, somos os Guardiões da Paisagem. Não temos um cliente, temos vários clientes. Somos chamados pelo cliente que nos paga, somos controlados por uma câmara que nos fiscaliza, muitas vezes mal, e mal por ignorância dos próprios técnicos que têm medo de avaliar um projecto e de apoiar bons projectos por ignorância, e depois temos um outro cliente que é um cliente invisível que é toda aquelas pessoas que têm de viver com aquilo que fazemos e construímos na paisagem. E por isso para mim os grandes prémios são as pessoas que me abordam na rua para agradecer porque o bairro tem outro cheiro [a propósito do projecto Casa das Fragâncias, na rua do Patrocínio] ou nas Pedras Salgadas por conseguimos devolver vida àquela localidade. Esses são para nós os grandes prémios, os que fazem da nossa profissão uma Profissão Grande.
A utilização do CLT ou da madeira, numa forma genérica, muda a forma como faz arquitectura?
A madeira passou a ser uma matéria-prima e é com ela que vamos trabalhar e que não nos impõe limites à criatividade. Não nos sentimos limitados com o facto de estarmos a desenhar com base numa matéria-prima que parece muito rígida. Faz parte da análise, faz parte do processo. Em todos os projectos que trabalhamos têm um racional muito grande por trás. Nada acontece por acaso. Na Casa 3000, que pode parecer uma brincadeira, nada daquilo que ali está aconteceu por acaso. Eu tenho uma grande desconfiança hoje nos projectos de engenharia porque os engenheiros fazem o by the book, e não olham para o ADN das coisas, como nós arquitectos olhamos. E quando se tratou de uma casa totalmente em CLT e uma casa totalmente auto-suficiente, a minha primeira preocupação foi falar com Universidade de Aveiro para nos monitorizar e fiscalizar todos os projectos da especialidade, para garantir que aquilo que estava a ser projectado realmente estava certo e funcionava. E nós recorremos muito a esse apoio das universidades para garantir que o que fazemos está bem feito.
Hoje fala-se de sustentabilidade, mas depois vemos edifícios de vidro a surgir. Fui outro dia a Aveiro e fiquei estupefacto porque a nova arquitectura em Aveiro é toda ela preta…
Fala-se de sustentabilidade, mas não se constrói sustentável?
Privilegia-se o bonito, mas na sequência de um projecto o bonito não pode ser a primeira preocupação. Antes do bonito têm que acontecer uma série de coisas primeiro, para que as coisas sejam boas e quando as coisas são boas as coisas tornam-se bonitas. Mas estamos a estudar outros processos de construção pré-fabricada porque há situações em que o CLT pode não ser a resposta. Estamos a investigar novos processos e novas formas de construir porque o mundo está a mudar e não se pode desperdiçar a matéria-prima da forma como nos últimos 60 anos o fizemos. O mundo tem de ser capaz de construir melhor.
A busca por novos materiais
A utilização da madeira é uma constante no seu trabalho?
Gosto muito da madeira. A madeira, o ferro e a pedra são os grandes materiais de construção. A madeira agrada-me, sobretudo, por ser um material reciclável. Eu planto hoje uma árvore e daqui a dez anos com ela construo uma casa. A madeira faz todo o sentido. Obviamente, que não pode ser qualquer madeira, estas têm características totalmente diferentes e a escolha tem de ser feita com critério.
Confesso que temos feito alguns projectos muito com carácter experimental, tínhamos pouco obra feita com madeira e houve muito experimentalismo. Usámos muito criptoméria que vem dos Açores e é uma madeira fantástica para construção, usa-se muito no Japão. Mas neste momento estamos a estudar muito seriamente o CLB.
Em que consiste o CLB?
No CLB é utilizada exactamente a mesma tecnologia que no CLT, mas com bambu. O bambu tem um ritmo de crescimento muito acelerado e pode ser uma solução muito interessante. Em Moçambique e noutros países onde estamos a trabalhar colocamos a hipótese de podermos vir a utilizar CLB na construção. É uma madeira que tem um comportamento extraordinário em termos de longevidade e depois tem a parte da reprodução que é muito interessante.
Mas estamos a fazer uma coisa que é completamente o contrário do que devia ser feito e que está a acontecer noutros países que têm um ordenamento do território extraordinário, como a Áustria. A cadeia começa na produção florestal, depois passa para a serração e só depois acaba no CLT. Ou seja, aqui estamos ao contrário. Estamos a começar pelo CLT ainda não temos serração e muito menos exploração florestal.
Já há produção de CLT em Portugal, mas não temos produção florestal que possa apoiar esta indústria, quando ela se tornar de facto uma indústria. E não tenho dúvidas que isso irá acontecer.
O que está a ser feito para dinamizar a construção de CLB nos países africanos onde estão a trabalhar?
É um processo que está um embrião. Estamos a fazer uma série de projectos em Moçambique e sabemos que na África do Sul e na Tanzânia já se já se produz muito CLT. O CLB ainda é um projecto em embrião estamos a fazer contactos com especialistas no bambu para aperceber como é que conseguimos transformar o bambu em CLB. Mas é algo que só irá produzir resultados daqui a cinco ou seis anos. Há que percorrer primeiro “o caminho das pedras”…
Sente-se sozinho nesse percurso em Portugal?
Defendemos aquilo em que acreditamos. Pensamos pela nossa cabeça, fazendo o nosso curso e os outros têm obrigação de fazer o mesmo. Não me sinto órfão de nada. Tenho uma equipa fabulosa, extraordinária, estamos a preparar o futuro do atelier. Hoje, quem nos vem vender soluções ao atelier, fá-lo a dar uma aula para os nossos arquitectos para que essas conversas depois não se percam no arquivo dos materiais e dos catálogos. Da mesma forma que promovemos debates e palestras no nosso auditório. Não somos uma academia, mas queremos ser um atelier escola.
O atelier hoje é comandado pelo Tiago, meu filho, e pelo Pedro Barros Silva, meu genro, que são quem comanda aquela banda. Eu estou mais por fora, a apoiá-los que toca à credibilidade, no que toca à defesa de soluções que apresentamos junto dos clientes.
E eles seguem este seu interesse e paixão por estas novas soluções?
Estas soluções que defendo são coisas que descobrimos em conjunto no atelier. Eles estão completamente alinhados. Este discurso não e só meu, é o resultado de discussões em torno destes temas que nos inspiram. A inspiração leva à discussão e a discussão leva à inspiração. As primeiras três ou quatro linhas orientadoras da Casa 3000 surgiram de uma conversa que tive com o dono de obra quando visitámos o terreno. A solução surgiu ali, naquele momento, e depois foi ganhando massa critica.
Isso ainda o surpreende?
Eu chego a esta idade e realmente acontecem coisas extraordinárias que nunca me tinham acontecido enquanto arquitecto. Uma é chegar a um território que não tinha qualquer referência. É como construir uma casa no deserto, não há nada que nos ajude a começar uma história ou a criar um racional à volta de uma história e a Casa 3000 é muito isso. Assim como a reabilitação da igreja de São José dos Carpinteiros foi um projecto por subtracção. Ao contrário daquilo que a maioria dos clientes nos pedem, que é sempre mais… mais um andar… mais…
Da mesma forma que hoje volto ao projecto onde trabalho há 30 anos. Enfim, tenho tido a sorte de voltar ao projecto [Six Sense], de o repensar e melhorar. Fruto da maturidade, da idade, da pressão, da densidade houve coisas que percebo que não correram tão bem. Voltar a trabalhar naquele projecto permite-me torná-lo mais sólido.
Onde vai incidir a intervenção?
Num dos edifícios do conjunto turístico, ao qual não acho muita graça ou que não correu muito bem. O cliente pôs me à vontade para o demolir e voltar a construir, o que eu nunca farei mas retirar-lhe pisos isso com certeza que vou fazer. Este vai ser mais um projecto por subtracção ou, se quiser, numa discussão de conceito em que que menos pode ser mais. Essa noção de que vale a pena construir menos para construir melhor e ao construir melhorar pode ter-se margens de lucro muito mais eficientes. O Six Sense deve ser o hotel mais rentável e considerado internacionalmente, talvez o melhor hotel em Portugal. Tem cerca de 80 chaves e 250 a 260 colaboradores directos e um grande problema ao nível da contratação de pessoal e querem reduzir a taxa de ocupação. São outras formas de olhar para as coisas. Às vezes fazer muito não significa que se ganhe muito dinheiro, às vezes é preferível fazer menos, com mais qualidade e daí retirar mais resultado financeiro no final da operação.
Como vê o futuro a médio prazo para a construção em madeira?
Neste momento já há uma série de promotores despertos para estas soluções e que já estão a investir. Veja por exemplo a Vanguard que adquiriu uma fábrica para construir em madeira, para os seus projectos na Comporta ou a dst. Há várias empresas no mercado que estão neste momento a considerar muito seriamente a montagem de fábricas de CLT. Os empreiteiros estão muito interessados em aumentar o nível de pré-fabricação na construção e de controlar essa pré-fabricação. Não tenho dúvidas nenhumas que este é o caminho, seja com a utilização da madeira, seja apostando noutras tecnologias. Para mim a Madeira é sem dúvida nenhuma aquela que numa lógica de sustentabilidade é a mais correcta a que me parece ser o caminho natural.