“A arquitectura de um País é tão boa quanto melhor for a sua identidade histórica”
O arquitecto Frederico Valsassina recebeu a TRAÇO no seu atelier, na Graça, para uma conversa informal, sem rumo predefinido, impelida pela vontade e curiosidade em torno dos vários projectos de reabilitação que lhe passam pelas mãos. E são muitos, já que cerca de 80% do trabalho do atelier são intervenções deste tipo, destinadas a variados usos, de diferentes dimensões e de épocas distintas. E, por vezes, tudo isto num só projecto. Por entre as palavras e as estórias que conta, constatámos o enorme respeito pela história da cidade, o profundo sentido de família e o prazer que a prática da arquitectura lhe dá
Manuela Sousa Guerreiro
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Há 20 anos que cerca de 80% dos projectos que entram no atelier de Frederico Valsassina são projectos de reabilitação. Com eles, aprendeu a amar a história da cidade e, acima de tudo, a fazê-la respeitar nos inúmeros projectos que já lhe passaram pelas mãos. Mas esta é apenas uma parte, ainda que bastante significativa, do seu trabalho. Outra das suas paixões são as Casas, projectos à primeira vista menos complexos, mas que lhe exigem uma relação mais íntima.
O que tem neste momento o seu atelier em mãos, em especial no domínio da reabilitação?
Estamos a transformar o antigo quarteirão da Caixa Geral de Depósitos, no Rua do Ouro, que será convertido num hotel, de cinco estrelas, para o Grupo Sana. Estamos também a trabalhar para este grupo hoteleiro, na reconversão do Convento da Graça. Dentro de dias, vai começar a reconstrução do Palacete de Alves Machado, antiga sede da Fundação Oriente, que foi reconhecido como monumento de interesse nacional, e que inclui também os seus jardins. Estamos a terminar a Casa do Lavra, que será um prolongamento do Torel Palace. Estamos também a acabar o Palácio de Mendonça, na Marquês de Fronteira, onde será a sede mundial do Ismaili Imamat e que terá como complemento o Palacete Leitão, cujo concurso para os novos escritórios também foi ganho por nós.
Está também a trabalhar no quarteirão do Cais do Sodré, que será transformado num hotel…
E que tem uma história engraçada, porque aquele quarteirão, no princípio do século, era um hotel, onde o Eça de Queirós escreveu ‘Os Maias’ e cuja acção decorre também naquele hotel.
E isso inspirou-o?
Não sei. É um projecto com alguma dimensão, carregado de história e, além disso, implicou um trabalho de análise muito criterioso. O edifício sofreu, desde a sua origem até aos dias de hoje, imensas alterações, tanto a nível de fachadas como dos seus usos. Houve um trabalho de marcar as épocas que o edifício viveu. Não se trata só de o colocar como ele era originalmente. A sua história foi também marcada por um incêndio e, ultimamente, era uma babilónia de usos, escritórios, habitação, comércio…enfim, uma confusão. Foi um projecto realmente difícil desse ponto de vista.
Depois, temos a reabilitação da fábrica Napolitana. Fizemos a reabilitação de um lagar do século passado, no Algarve, e a sua reconversão em turismo de habitação. Vamos entrar em obra no quarteirão da Fontes Pereira de Melo. São três edifícios, também para o Grupo Sana.
A necessidade de respeitar a arquitectura existente
Isto é um leque de projectos de diferentes épocas, com programas distintos. O que é comum para o arquitecto que os reabilita?
Um ponto comum é o respeito integral pela arquitectura existente. É o fundamental. Um projecto é quanto melhor, quanto não se perceber onde está a nossa intervenção. Claro que há edifícios destes muito degradados. Estamos a fazer a reabilitação do Palácio do Conde Barão do Alvito, para um grupo holandês, que tem uma história incrível. Nos anos 90, entrei no concurso jovens arquitectos que a companhia de seguros Lusitânia lançou para escolher a sua sede e o local onde iria albergar a sua colecção de arte. Foi lançado um concurso para dois palácios em que num deles ficaria a sede. Um era este do Conde Barão do Alvito e o outro o Palácio Porto Covo, na Lapa. Acabaram por escolher o segundo. Mais de 30 anos depois, voltei a trabalhar nele e de palácio tinha muito pouco. O antigo proprietário teve imensas dificuldades em aprovar os projectos e o edifício foi-se degradando. Quando começámos o nosso trabalho no palácio, este não era mais que uma ruína. Isto para lhe dizer que estes edifícios têm um tempo para serem reabilitados.
O que demorou neste caso? Presumo que não estiveram 30 anos à espera de licenciamento…
Especulação imobiliária. Há muitas pessoas que estão no mercado não para fazer coisas, mas para especular. E esta décalage entre um espaço e outro é terrível.
Observando o percurso e a história destes edifícios o que é o arquitecto preserva?
Acho fundamental preservar a identidade e preservar conceptualmente o edifício como foi desenhado na sua origem. Depois, uma criteriosa escolha dos materiais que se identifiquem com a época, mas também que mantenham a contemporaneidade da sua renovação.
Acresce só depois o programa?
Acho que sim, e isso depende muito do arquitecto. Hoje, os licenciamentos são sempre normalmente difíceis porque, para além do programa de arquitectura, há também um estudo dos bens arquitectónicos e um estudo de conservação e restauro. Nós, aqui, temos a mania de começar com as sondagens arqueológicas muito cedo, que é para elas não virem a condicionar a obra.
A escolha da reabilitação
E, nesse percurso, quem trabalha consigo é esta equipa que aqui está?
São cerca de 25 pessoas, muitas delas já estão habituadíssimas. Há 20 anos que cerca de 80% dos nossos projectos são reabilitação.
Isso é uma escolha sua?
Por acaso não. Gosto, mas é o mercado que define estas coisas. E ainda bem porque Lisboa está a ficar uma cidade impecável. Estamos aqui em Alfama e, há uns anos, olhava e via os telhados todos a cair. Depois, houve uma altura em que só havia gruas e agora vejo tudo isto restaurado. E isso é bom porque eu acho que a arquitectura de um país é tão boa quanto melhor for a sua identidade histórica.
Faz uma crítica positiva àquilo que vem sendo feito em Lisboa, de uma forma em geral?
Como tudo. Há coisas que são bem feitas e há coisas que são mal feitas mas, no global, acho que o trabalho que tem sido feito tem sido positivo. Há uma coisa que me preocupa, e que já nos aconteceu, que é o roubo do património arquitectónico do nosso País. Quando começamos a intervencionar um edifício, fazemos os relatórios prévios, os levantamentos e depois começam as sondagens arqueológicas. A partir do momento em que estas começam e a obra está aberta há, insistentemente, roubos de pedras, azulejos… é uma brutalidade, há um mercado paralelo inacreditável e é uma coisa que é difícil de parar mesmo fazendo queixas à policia.
O interessante disto [reabilitação] é que nós adaptamos estes edifícios a usos completamente díspares do que o foram na sua origem e isto é um desafio acrescido, o de pensar como é que o edifício vai viver com outros usos.
Algumas destas reabilitações o surpreendeu?
A fábrica da Napolitana surpreendeu-me imenso pela qualidade original de construção que tem a assinatura da empresa francesa Vieillard & Touzet. É uma construção metálica, com as fachadas forradas a tijolo maciço e tem umas condições estruturais fantásticas. Isso surpreendeu-me imenso. É um requinte de construção, dos pormenores muito idênticos aos edifícios industriais que vemos em Londres ou em Paris.
Outros projectos que surpreenderam, sobretudo pela sua riqueza de ornamentos, foram o Alves Machado, o Alto Meirim e a Casa do Lavra. Trabalhei com o historiador José Sarmento de Matos, um historiador de Lisboa fantástico, e tenho trabalhado muito com o Galvão Telles. Eles levam-nos a entender o porquê desta riqueza. Eram pessoas que tinham muito dinheiro, proveniente das roças de cacau de São Tomé e Príncipe, com recurso a trabalho quase escravo, e a maneira de eles se apresentarem à sociedade era convidarem o melhor que havia de artistas e arquitectos. Por isso são casas com uma riqueza ímpar.
Enquanto arquitecto o que é que lhe dá mais gozo fazer: reabilitação ou construção nova, e estou a recordar-me do projecto da Herdade do Freixo, por exemplo?
Quando são desafios novos divirto-me imenso. Foi o caso também do hospital Cuf Tejo, que era uma área que eu não dominava muito. Tinha feito algumas coisas, mas não daquela dimensão e estudei aquilo a fundo. Um dos grandes atractivos da profissão do arquitecto é que aparecem desafios que são uma oportunidade para estudar assuntos novos, o que me diverte imenso. Foi um programa muito interessante e partiu de um concurso. Às vezes gosto de entrar em concursos, mas já não entro em muitos. Já desenhei outras adegas. Por exemplo, estou a fazer uma outra para o Grupo Libertas, ali no distrito de Setúbal, com o mesmo princípio que a do Freixo, mas não tão enterrada. Outra coisa é que nestes projectos o arquitecto volta à obra, que é onde se decidem muitos dos imprevistos que vão surgindo.
A luz é uma coisa que me interessa na arquitectura, e na reabilitação surgem-me edifícios muito bem implantados, com um grande respeito pela luminosidade, o que é uma coisa muito interessante.
Falou há pouco que participa pouco em concursos, o que o leva então a entrar?
O que me leva a participar é uma pessoa perceber como é que o atelier está a funcionar. Um atelier, para poder entrar num concurso, tem de ter alguma dimensão de trabalho, que é para uns poderem estar a ganhar dinheiro, enquanto outros estão a fazer concursos. Não entro em muitos porque felizmente consigo ter algum trabalho. Tenho o atelier sempre a produzir e não vou parar para um concurso. Só o faço quando o programa me é extraordinariamente apetecível, como foi o caso da Herdade do Freixo. O local era fantástico, apesar de eu achar que é o arquitecto é que faz o sítio e não o contrário, mas era um sítio lindíssimo fiquei logo apaixonado … e eu gosto de vinho (risos).
Pelo oposto…
Há outros concursos que não me despertam o mínimo interesse. O facto de a maior parte dos concursos não serem pagos é um abuso. Os jovens arquitectos muitas vezes não podem entrar porque não podem suportar os custos. Uma pessoa escolhe o arquitecto porque gosta da maneira dele trabalhar, porque gosta da sua arquitectura, tem boas referências… mas há outras pessoas que estão indecisas e eu percebo perfeitamente que façam um concurso. Eu gosto imenso de fazer casas. Havia uma pessoa que queria fazer uma casa e não sabia muito bem o que é que queria e convidou cinco arquitectos, pagando-lhes um estudo prévio. Acho lindamente. Na arquitectura, uma pessoa é sempre um eterno insatisfeito, nunca está contente com o trabalho que tem e está sempre aflito a ver se vai ter mais trabalho. Muitos promotores e investidores acham que podem tirar partido da incerteza que é o meio da arquitectura nacional para fazer concursos. Mas só pedem, não oferecem nada. Como costumo dizer “já dei para esse peditório”.
A paixão pela intimidade
Gosta de fazer casas?
Gosto imenso. É uma situação completamente distinta de termos uma encomenda de um fundo, que é uma coisa muito impessoal. Com uma casa é exactamente o contrário. Há uma relação muito íntima com as pessoas, conhecemos a sua maneira de viver, a maneira de estar, como é que se organizam familiarmente, existe uma relação directa e isso é muito interessante. Quanto melhor uma pessoa conhece, melhor projecta.
Cresceu no meio da arquitectura, os seus filhos crescem no meio da arquitectura, têm hipóteses de fugir a este desígnio?
Tenho duas filhas e só uma é arquitecta, a Marta. Ela trabalha comigo e tem revolucionado um bocado o atelier com uma maneira de pensar diferente. Na minha família, somos para aí uns 20 e tal arquitectos. O meu avô [Raul Tojal] foi um arquitecto muito importante do modernismo português, eu vivi na Praia das Maçãs, no Bairro dos Arquitectos. Acho que nunca tive dúvidas que era o que queria ser, nunca andei a navegar por outras áreas…
A Marta seguiu as suas pisadas. Sentiu-lhe esse gosto cedo?
Acho que é um gosto muito parecido com o meu e eu aconselho-me com ela já há muito tempo. Pergunto se ela gosta, se não gosta, o que é que acha. Ela tem muito jeito para interiores. Quando vejo que o cliente se adapta muito à maneira de viver dela, ela depois é que segue o projecto. Fizemos uma reabilitação de uma casa fantástica, na Rua Garcia da Horta, um palacete antigo, (dizem agora que foi vendido em Lisboa com m2 mais caro), e depois o cliente encomendou-me os interiores todos e foi a Marta que seguiu na obra. Fizemos agora uma recuperação, também de outra casa muito gira, a Quinta Velha, em Sintra, na rampa da Pena e também fizemos os interiores. Quando eu vejo que os clientes querem muito de nós, é a Marta que segue o projecto, porque tem muito bom gosto e há clientes que gostam que o projecto seja todo feito pelo atelier, inclusive o mobiliário.
Desenhar o mobiliário é algo que faz amiúde?
Só para projectos nossos. Há clientes, neste tipo de projectos, que nos pedem um apoio directo, que se sentem bem quando o arquitecto se apresenta nas reuniões de obra e que acompanhe e que seja um confidente e isso faz sentido. Às vezes, sinto-me frustrado quando desenho uma casa e depois o interior é feito pelo interior designer. Vou lá ver e depois digo para mim “não foi nada disto que eu pensei” e isso já me aconteceu variadíssimas vezes. Também acontece o oposto. Fizémos uma casa na Rua do Salitre, uma casa engraçada, lixada de se fazer porque era um edifício pequenino, com cinco pisos. Imagine desenvolver uma casa em cinco andares mas muito acolhedora. Foi a Marta que levou esse processo até ao fim. Eu tenho confiança nela e ela desenvolve estes projectos de tal forma que essas casas podiam ser a minha casa. É muito reconfortante entrar numa casa e parecer que é a minha casa. Sinto-me bem. Repare nesta história: desenhei uma casa para uns clientes que não gostam que fale em nomes. Esse terá sido um dos primeiros projectos que fiz com a Marta. A dada altura, o proprietário pediu-nos para fazermos também a decoração dos interiores. No final, fizeram uma festa de inauguração da casa. Às páginas tantas, durante a festa, dei pelos proprietários estarem sentados na sala, a um canto, como se fossem eles os estranhos. Parecia que aquela era a minha casa. Eles depois viveram e gostaram imenso da casa mas, ao princípio, era-lhes estranha porque não a viveram desde o projecto. Quando fazemos os interiores é para pessoas que querem gozar a casa connosco.
Não há esse envolvimento na reabilitação?
Fizemos agora uma obra de reabilitação, no Porto, no Largo de São Domingues, na Rua das Flores, um hotel de 20 quartos, que resultou na reconversão de seis edifícios, porque estes são edifícios do século XV e XVI muito estreitos. Foi um projecto complicado, mas que correu bem. O interior foi todo decorado por uns arquitectos holandeses e o resultado não tem nada a ver com o que era viver no Porto e eu digo que o hotel está muito giro mas podia ser em Nova Iorque ou em Washington.
Fazer reabilitação no Porto e em Lisboa é diferente?
O Porto teve muito melhores artífices, mas não é tão monumental como Lisboa. É completamente diferente. Em Lisboa, há muito mais história e muito mais épocas num único projecto. Aqui à volta do atelier, na reabilitação que fizémos, descobrimos uma Lisboa pré-histórica, romana, muçulmana, idade média, descobrimentos, renascimento, pombalina… Foram descobertos extractos da cidade e o que devemos fazer é a arquitectura mais inócua, mais simples possível, porque isto está carregado de história. O nosso pavilhão fazia parte do Convento de São Vicente, no tempo dos espanhóis, no século XVI. Depois deu-se o terramoto e a cidade transformou-se
O seu atelier só podia ter esta localização [Graça]?
Estou aqui há 25 anos. Eu fiquei com o atelier do meu avô, em casa dele. Vivi lá quando me casei e, depois, usei esse atelier. Cresci e passei para a Avenida de Roma. Tive, depois, uma casa na João XXI que era muito grande, mas aquilo sabia-me a pouco. Este espaço era de um amigo, o Gustavo Brito, que é o dono do Paris:Sete, onde ele tinha o stock off. Um dia, já não sei porquê, vim cá. Ele já não estava interessado no espaço e acabei eu por ficar com ele.