Nuno Sampaio (créditos: Ivo Tavares Studio)
A Casa ou o lado menos visível da arquitectura
Cerca de 70% do trabalho do arquitecto nunca chega a ser construído e, na maioria das vezes, esse trabalho nunca chega a ser visível. Foi esta vontade de mostrar ‘o outro lado’ da arquitectura que impulsionou a criação da Casa da Arquitectura (CA) enquanto “instituição de promoção da arquitectura”. Hoje, mais do que nunca, a CA tem um papel de consciencialização junto da população
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Constituída como associação desde 2007, foi em 2017 que a Casa da Arquitectura se instalou na recuperada Real Vinícola, em Matosinhos. Cinco anos volvidos, este espaço tornou-se a Casa de alguns dos mais importantes acervos nacionais e internacionais. Em conversa com a Traço, Nuno Sampaio, director executivo, falou sobre o trabalho realizado até aqui, os projectos futuros da CA, enquanto interlocutor entre os arquitectos e a sociedade, mas também, sobre a importância de ‘fazer’ arquitectura.
Traço: Como surgiu a ideia, a vontade de criar esta Casa?
Nuno Sampaio (NS): A Casa da Arquitectura surgiu pela necessidade de curadoria de uma instituição nacional de promoção da arquitectura e pela vontade de cuidar de um património arquitectónico documental, isto porque cerca de 70% do trabalho do arquitecto nunca chega a ser construído. Portanto existe uma forma de reutilizarmos essa experiência de vida dos arquitectos que de outra forma nunca chega a ser visível nem aproveitada. Surgiu, assim, a vontade de fazer uma instituição de promoção da arquitectura.
A iniciativa surge por parte da Câmara Municipal de Matosinhos (CMM), que viu a oportunidade de a Casa ficar em Matosinhos e curiosamente de ser na terra do arquitecto Álvaro Siza, sendo o local ideal para poder apoiar uma instituição que se queria desde logo uma instituição nacional e até de âmbito internacional.
Depois de uma reunião com entidades como o IPPAR, a Ordem dos Arquitectos e outras ligadas à arquitectura e à cultura, além de um conjunto de empresários, a ideia do nome da CA surgiu na sequência de uma conversa entre o Belmiro de Azevedo e o Álvaro Siza. Foi Belmiro de Azevedo que disse que não podia chamar-se museu da arquitectura porque “essa coisa dos museus parece uma coisa muito morta. Vamos chamar-lhe Casa, a Casa onde nós podemos reunir os amigos”. E assim foi. Na altura, pela mão do principal empresário português, que surgiu esta instituição, que começou por ser uma associação.
Ou seja, sendo uma jovem instituição, tem na Real Vinícola, enquanto Centro Português de Arquitectura cinco anos, apesar de ter tido uma vida de ‘gestação’, de preparação, de quase sete anos.
A partir do momento em que ficou pronto o quarteirão da Real Vinícola, feito pela CMM, com um investimento de mais de 10 milhões de euros, a Casa da Arquitectura passou a ter as condições físicas que lhe possibilitaram ser o Centro Português da Arquitectura. Este centro actua em várias áreas, começando pela base, que é o tratamento de acervo, um trabalho profundo, silencioso, moroso, caro de se fazer, que é cuidar do património documental dos arquitectos.
Quando vamos a um museu de arte, nós vemos a peça de arte, o quadro ou a escultura, quando vamos a um museu de arquitectura vemos representações dessas arquitectura – filmes, desenhos, fotografias, maquetes. A arquitectura está lá fora, são os edifícios e o espaço público, mas este material também é preciso preservar. Portanto, o primeiro trabalho da Casa da Arquitectura é receber, fisicamente, trabalhar, cuidar, preservar, recuperar e preservar o património documental dos arquitectos.
A segunda área é, naturalmente, uma grande responsabilidade para que esse acervo se torne disponível para a sociedade. No fundo, o dinheiro que se gasta para conservar e tratar e documentar e catalogar os acervos de arquitectura tinham que ser postos à disposição das pessoas, seja em formato físico, seja de forma digital, algo que conseguimos este ano. Neste momento, temos um edifício digital, o chamado ‘second building’ onde colocamos tudo aquilo que arquivamos para que todos os acervos que lá se encontram possam ser visitáveis e consultáveis a partir de qualquer parte do Mundo.
O terceiro trabalho é o da promoção da investigação. A CA fez um protocolo com o Estado em que está a desenvolver, com a Fundação de Ciências e Tecnologias, mais de 200 anos de investigação. Ou seja, durante cinco anos, 10 investigadores podem ganhar bolsas que vão até quatro anos pagas para poderem investigar os acervos da Casa. E depois temos, ainda, outras políticas de apoio à investigação e ao estudo, como por exemplo, a criação de uma residência artística, na antiga casa de família de Álvaro Siza, onde o arquitecto realizou o seu primeiro projecto (um pavilhão no quintal) a pedido de seu pai, quando tinha 16 anos, e que irá permitir que outros venham de fora e possam estar com melhores condições a trabalharem na Casa, sejam investigadores estrangeiros, curadores e até jornalistas.
Depois existe uma outra dimensão, mais publica, que se divide em algumas alíneas, que é a promoção da arquitectura junto do grande público. Esta vertente, até de serviço público de levar a arquitectura até à sociedade, para que a arquitectura seja entendida pelas pessoas, na forma como decorre o processo gerador dessa arquitectura. Normalmente quando se contrata um arquitecto não nos dão nem o orçamento, nem o tempo para fazer um projecto, porque as pessoas não sabem o que é um projecto, nem muitas vezes qual é o benefício de terem um arquitecto a fazer o projecto de sua casa, do espaço onde trabalham ou até, num plano mais público, ter o espaço público cuidado, desenhado por um arquitecto. Nessa perspectiva, é muito importante o papel da CA, ou seja, a criação de uma consciência pública sobre a importância da arquitectura para a sociedade para que haja uma maior exigência da população perante os operadores, quer os públicos, quer os privados (imobiliários).
Quanto mais consciente for um autarca da importância do seu espaço público ser feito por um arquitecto, mais facilmente discute e exige o melhor projecto, o que leva naturalmente a um melhor espaço público e quem beneficia é a população.
O mecanismo que a CA encontra é trabalhar este universo, que somos todos nós, os consumidores da boa ou da má arquitectura, para que entendam, reflictam e se tornem conscientes e simultaneamente mais exigentes. É preciso não esquecer que a habitação, por exemplo, é o primeiro direito constitucional. Nós entendemos que, nada nem melhor, preparado para poder desenhar essa habitação que os arquitectos. Este trabalho da CA é naturalmente conservar o material, permitir que seja investigado e estudado, mas dirige-se essencialmente à população em geral para aumentar a consciência de que uma boa arquitectura influencia na vida de cada um de nós.
E este trabalho é feito com exposições, seminários, coisas onde nos possamos falar de arquitectura e de território, mas de uma forma que as pessoas possam entender, ver e que seja acessível.
Que balanço faz destes cinco anos?
É um balanço muito positivo. A CA conseguiu, num curtíssimo espaço de tempo, consciencializar e dar a entender à sociedade que é um espaço aberto para falar de arquitectura para toda a gente e este aspecto foi muito bem entendido pela própria população.
Por outro lado, conseguiu afirmar-se na sua dimensão nacional. O Centro Português de Arquitectura tem como objectivo actuar em todo o território nacional. Isto é fundamental. E uma prova disso é o recém-criado o ‘Tours’, uma iniciativa conjunta com o Turismo de Portugal, em que estarão abertos para visita um conjunto de espaços, que até Agosto do próximo ano serão no total 150, em todo o território nacional, continente e ilhas. Foram criados percursos em todo o País com edifícios abertos e gente competente para poder explicar essa arquitectura, ou seja, de forma descomplicada e descodificada.
Outro grande objectivo que a CA atingiu foi a sua dimensão internacional, nomeadamente, com um acervo de mais de 200 doadores proveniente do Brasil. Em consequência deste trabalho, a CA tornou-se a primeira instituição do mundo a receber colecções de acervo territoriais com curadoria, ou seja, de um determinado território, de um determinado arco temporal, discutido e escolhido por quem sabe e conhece.
Actualmente quantos acervos é que têm?
Só do Brasil temos cerca de 60 nomes envolvidos, entre eles Paulo Mendes da Rocha e Lúcio Costa, o que deu uma dimensão internacional à CA. Dos arquitectos portugueses, além do Eduardo Souto de Moura, do Pedro Ramalho, o Carrilho da Graça, Teresa Fonseca, temos, recentemente, mais dois nomes, a Teresa Seixas e o Manuel Correia Fernandes e, ainda, o José Gigante, que ofereceu não só o seu acervo de arquitectura, como o acervo fotográfico do seu pai, Jorge Gigante. Temos, também, o acervo do fotografo Luís Ferreira Alves, ligado à arquitectura e à cidade.
Importância da arquitectura
Quais os planos para o futuro da CA?
Vamos começar a actuar sobre o espaço da visita da arquitectura com este novo projecto com o Turismo de Portugal que se soma a uma outra iniciativa que já tínhamos que era o Porto Open House.
Para o próximo ano iremos ter uma grande exposição do arquitecto Paulo Mendes da Rocha, também na óptica de mostrar aquilo que arquivamos. Com curadoria do arquitecto e historiador de arquitectura Jean-Louis Cohen e de Vanessa Grossman, arquitecta brasileira sediada em Roterdão, esta será uma exposição única, porque é a oportunidade que de se ver tantos originais do arquitecto brasileiro num só espaço e que já fazem parte do acervo da Casa.
Outra área para nós muito importante, é o lançamento de publicações de referência de forma regular. A ideia que nós queremos mostrar é que com a CA se podem decidir reflexões de estudos, de investigações, que depois possam ser compradas em livro e que sejam de grande referência a nível mundial.
Estes livros serão produzidos e comercializados pela CA e depois distribuídos pelas diferentes livrarias em Portugal e no estrangeiro, também noutras línguas em co-produção com outras editoras.
Outra área que temos assumido, é a possibilidade da CA promover novos estudos. Seja pelas exposições, sejam momentos onde chamamos várias pessoas a estudarem a arquitectura sobre um determinado problema ou um conjunto de problemas sobre uma determinada matéria. O próximo que estamos a organizar é sobre os contextos de emergência e como é que a arquitectura pode ajudar nestes contextos.
Falamos, por exemplo, em contextos de suburbanidade, como as favelas, ou em situações onde existe falta de água, como África, ou então em cidades, que pelo contrário têm um conjunto de acidentes climáticos cada vez mais comuns e que criam em alguns momentos destruições maciças e que, portanto, é preciso que a arquitectura dê uma resposta e de forma rápida, eficiente, concreta. Outras são, naturalmente, os grandes êxodos que temos na Europa ou em contextos de guerra e que não têm lugar onde ficar e que é preciso resolver e com condições condignas. Estes sistemas vão ser abordados numa exposição, chamada ‘Arquitectura em contexto de emergência’, e num conjunto de actividades, onde serão chamados peritos mundiais, activistas inclusivamente, para pensarem como é que a arquitectura pode ajudar essas pessoas.
Segundo Souto de Moura, a arquitectura serve para resolver problemas. E, portanto, partindo desta premissa não queremos apenas mostrar o quão bonita é a arquitectura ou quão fantástico é o trabalho daquele arquitecto, no passado, nos últimos 30 anos, mas também termos uma visão, uma perspectiva do futuro, para ajudar a resolver problemas e para que as populações vivam melhor.
Tendo em conta a emergência que o planeta vive com as alterações climáticas e com as consequentes catástrofes que provocam é cada vez mais um tema que faz parte do dia-a-dia dos arquitectos. Esta é uma área que já seja estudada?
Quer dizer, a arquitectura é talvez das áreas disciplinares mais transversais no conhecimento. Nós trabalhamos com biólogos, com engenheiros de estruturas, engenheiros hidráulicos, paisagistas, com sociólogos, economistas, com construtores. No fundo, o que estamos a ver é uma tendência, que nem sempre parece positiva, mas que pode também trazer oportunidades, é a sociedade dizer que arquitectos e construtores se entendam para arranjar produtos que sirvam a sociedade.
Muitas vezes sabemos que o lucro fácil de alguns construtores pode levar a que se baixe a qualidade da arquitectura. Portanto, é ainda mais importante que este papel da CA, de ajudar a criar rapidamente uma consciência pública da importância da qualidade na arquitectura como factor de melhoramento das condições de vida das populações.
Ou seja, que, com a nova legislação que o Estado português criou sobre a concepção-construção, nós não fiquemos reféns do lucro fácil de alguns construtores que ganham ao preço mais baixo. Que o próprio Estado entenda que é preciso lançar concursos com outros objectivos que não o preço mais baixo.
As ‘contas’ do Estado
Em teoria essa questão está prevista, mas depois na prática as coisas são bastante diferentes. Até em matéria de sustentabilidade, onde alguns concursos colocam este critério de avaliação em último…
Exactamente. Nós sabemos que alguma sustentabilidade sai cara no momento da construção, mas por outro lado, poupa-se no prazo de vida do edifício e na exploração que fazemos do edifício. Por isso, os regulamentos são cada vez mais exigentes, ao nível térmico, acústico, etc. O metro quadrado está cada vez mais caro e quando queremos construir em grande quantidade, muitas vezes há tendência para reduzir a qualidade para termos arquitecturas que tenham a capacidade de resolver os problemas, mas ‘baratinho’. E esta é uma tentação que nós não podemos ter. Nós enquanto sociedade. O facto de termos uma nova forma de encomendar arquitectura que essa não fique refém, como nós sabemos e que aconteceu no passado nos finais de 70 e inícios de 80, em que se produziam muitas coisas pelos chamados ‘patos bravos’, que eram construtores não qualificados, que nem chamavam arquitectos a fazer os projectos. Actualmente, temos construtores mais qualificados, mas não sei se é porque o mercado público assim o exige produtos mais baratos que depois nos saem mais caros a todos, nomeadamente no que diz respeito à exploração energética de quem vive nesses edifícios para ter as condições térmicas, sai muito mais caro à sociedade.
Neste momento, o Estado está a promover um conjunto de habitação para arrendamento acessível, por exemplo, e em todas as situações o preço é o critério com mais peso…
Na minha opinião está-se a fazer mal as contas. Se tivermos em conta quanto é que custa esses edifícios em boas condições construtivas a 30 anos e se somarmos os custos relativos à sua exploração energética, nomeadamente em aquecimento e arrefecimento, vai gastar-se mais seguramente. Esta é uma verdade La Palisse.
Como podem os arquitectos contornar esta situação?
Vão ter de unir esforços com os construtores, mas ao mesmo tempo tem que se trabalhar para que o Estado Português exija qualidade nas compras que faz. E não podemos comprar arquitectura ou edifícios da mesma maneira que compramos papel higiénico.
Como é que se quer atingir as metas climáticas se depois o que se está a construir neste momento não vai ao encontro desses objectivos?
Existe aqui um problema, que é também um desafio muito grande. Como é que nós podemos dar as mãos aos construtores, produzindo soluções desde pré-fabricações, a rentabilidade no teste de modelo tipológico, na medida em que já sabemos quanto é que mede uma sala, um quarto como é que se organiza, a casa de banho já vir construída e apenas acoplar.
Acredita que a pré-fabricação dos módulos em fábrica vai ser a solução no futuro?
Não tenho dúvida. Agora não pode ser feito na perspectiva, como acontece muitas vezes na indústria, em que uma pequena diferença multiplicada por milhões de unidades faz com que se reduza os custos, mas muitas vezes não é quantificável quanto essa diferença custa na qualidade de vida espacial de quem a habita, mas sem que isso retire qualidade às habitações.
Da mesma forma que o covid introduziu alterações na forma como habitamos, em que já não basta termos um escritório em casa, porque numa situação de confinamento o que precisamos é que todos os quartos tenham um espaço extra para trabalhar, agora é preciso também entender que também se tornou importante que cada quarto tenha uma suite por questões de higiene, por exemplo.
Nunca deixar ‘parar a mão’
Para terminar, gostaria de saber, além do trabalho que tem desenvolvido na CA, onde é que fica o Nuno Sampaio enquanto arquitecto?
Nós arquitectos nunca gostamos de deixar parar a mão. É fundamental para nós não perdermos o contacto com a prática. Sabemos que muito colegas pelas funções que exercem em alguns organismos públicos, como eu à frente de uma associação, temos o tempo muito limitado, mas ainda vou fazendo algumas coisas e tenho sempre esperança que possa fazer mais. A minha esperança é que um dia eu não seja necessário e que as pessoas tenham esta capacidade de entender a arquitectura. Sabemos que a construção desta consciência que nunca vai terminar.
Gostava de voltar a dedicar-se à 100% à arquitectura um dia?
Talvez um dia, porque não. Nunca ponho isso de parte.