“Comunicamos através do desenho e não através da fala nem da escrita”
Numa grande entrevista à Traço, um dos mais conceituados arquitectos da actualidade faz o retrato da profissão, os desafios e as dificuldades, de uma classe “que nem sempre está unida”, considera. Acima de tudo, Miguel Saraiva acredita que é no acto de desenhar que está a base de toda a arquitectura, assim como no tempo “que é tão importante” para os arquitectos
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Miguel Saraiva fundou o atelier de arquitectura há quase 25 anos e, desde então, tem crescido e ganho notoriedade. Foi com a aposta nos mercados internacionais que conseguiu ultrapassar a crise e trazer para Portugal o know-how e a experiência que o distingue e que é hoje o ADN da Saraiva e Associados. Deixar um legado de qualidade e de valorização da profissão é o seu objectivo
Como se sente ao ver o seu nome associado a grande parte dos projectos que estão a ser desenvolvidos neste momento?
Sinto orgulho na maior parte deles, realização profissional e ao mesmo tempo uma grande responsabilidade. Tira-me horas de sono e enche- me de angustia. Eu costumo dizer que todos os dias tenho que viver com os meus erros. Não os posso enterrar porque eles são visíveis…e são muito expostos e por isso não gosto de errar e gosto de fazer bem
É muito perfeccionista?
Cada vez sou mais perfeccionista, o que me preocupa imenso. Num mercado onde a perfeição cada vez é mais desconsiderada…
Acha?
Acho… Acho que a obra construída dá reconhecimento, mas para chegar a essa mesma perfeição e a esse mesmo reconhecimento é necessário um envolvimento e uma energia tão grande que, pela sua dedicação ao desenho, à coordenação e ao acompanhamento de obra, muitas vezes não se reflecte no produto final.
Há uma luta constante entre aquilo que o arquitecto desenha e, depois o que o promotor pretende ou que pode ser concretizado. Ainda sente isso?
Eu acho que o maior desafio na arquitectura hoje é a relação entre o arquitecto e o promotor. O desafio, que devia estar concentrado no objecto, na cidade, está muito concentrado entre a relação do arquitecto e o promotor. É de um grande desgaste e porquê? Porque tudo ‘versa’ tempo e quando assim é, o tempo de maturação, de reflexão, de desenvolvimento é muito curto e isso gera conflitos e gera erros.
E hoje em dia como é feito o acompanhamento das obras?
Acompanho as obras com mais dificuldades, mas também tenho uma equipa muito mais sénior do que tinha anteriormente, que trabalha comigo, em média, há 15, 20 anos e isso permite uma grande facilidade de comunicação entre os colaboradores mais antigos. Eles também se reveem na obra e no meu pensamento o que acaba por tornar mais fácil o acompanhamento da obra. Eu gosto muito de obra e sempre que possível gosto de ir às obras.
Mas a sua experiência também tem que ter algum peso…
Aquilo que eu sinto é que os clientes talvez me ouçam mais do que me ouviam há 10 anos. Também a minha experiência internacional é hoje muitas vezes usada e aplicada no mercado nacional e por isso talvez os clientes tenham mais curiosidade em ouvir-me e, por outro lado, reconhecem uma determinada qualidade e por isso talvez me deem um pouco mais de liberdade. Mas essa liberdade é muito condicionada pelo tempo de execução e o tempo de execução é o maior inimigo hoje do arquitecto. Nós temos pouco tempo para conceber, nós temos pouco para coordenar, nós temos pouco tempo para desenvolver, para responder e para acompanhar a obra. O desafio é a questão do tempo, na relação com o cliente e com os outros agentes envolvidos no processo.
E como se pode gerir esse tempo?
Actualmente, existe a perfeita consciência que para desenvolver um projecto temos menos tempo que uma entidade pública tem para o aprovar, que uma entidade como a fiscalização ou a project manager tem para a analisar e, por isso, na minha perspectiva todo o processo está subvertido, porque a base de tudo isto é a concepção arquitectónica. E a concepção arquitectónica não se esgota só na ideia geral da arquitectura, vai muito além disso e por isso neste momento o desafio está em sensibilizar da nossa parte, e isso vem no seguimento de um processo de credibilização da nossa parte juntos agentes e promotores, em relação à necessidade desse mesmo tempo de maturação da ideia.
Não é um processo automático em que o arquitecto se senta e começam logo a ‘sair’ traços…
Não é…não é. Cada processo é único, indiferentemente da escala, do uso ou do local. Pode até ser de uma escala mais reduzida e ser mais complexo. Há projectos de raiz de grande escala que são menos complexos do que projectos menores, como os da área da reabilitação.
Esta questão do tempo é recorrente e parece-me que alguns promotores já estão mais sensíveis ao tema, contudo, sentem-se também eles pressionados para necessidade de apresentar o projecto, dos prazos de licenciamento, entre outros….
Eu acho que a encomenda, seja privada ou pública, não tem a mínima noção do tempo que é necessário para se desenvolver um projecto. Isto é uma questão cultural. No Norte da Europa, por exemplo, sabemos que vamos ter mais tempo e isso vai mudando quanto mais ‘descemos’ na Europa. A ‘latinidade’ reflecte-se ainda na gestão dos projectos, quando se acha que um projecto não precisa de tempo e que este é uma ideia que cai do céu e pela qual não é necessário reflectir.
Mas o tempo é também um grande inimigo do promotor porque por um lado prejudica a sua operação (custos associados, risco de mercado, preço de construção a aumentar), por outro lado, a qualidade do seu trabalho e a marca que quer constituir decai se não der o tempo suficiente, mas também, se o tempo for em excesso. Mas eu entendo essa pressão do cliente em relação ao tempo. E é preciso ter em conta que grande parte deste processo é consumido em termos de tempo pelas entidades públicas, que são elas que criam de certa forma, e isto tem que ver com o sistema organizacional e não com as pessoas, que se baseia num sistema piramidal. Sabendo de desta situação, o promotor tenta ganhar tempo onde? Na concepção do projecto para que este entre rapidamente na Câmara. Isto reflecte-se no tempo de execução do projecto, da obra, na revisão do projecto, tudo isso é penalizado pelo tempo que é consumido pelas entidades públicas. Não faz sentido.
Sendo o tempo tão importante já trabalhou com algum promotor que lhe desse ‘tempo’?
Devo dizer que trabalho com alguns sim, que me dão tempo, porque têm a perfeita consciência de que o produto que querem por no mercado, seja ele hoteleiro, seja promoção residencial, que não é por mais seis meses ou menos seis meses que vai fazer a diferença. Aquilo que os preocupa, e isso é um reflexo dos pós-crise, é que há um foco maior na qualidade. E o promotor do pós-crise é muito mais profissional do que o anterior à crise. Por isso, hoje há menos curiosos e mais profissionais nesta industria.
Imaginava que há quase 12 anos o atelier teria a dimensão e o trabalho que tem hoje?
Foi uma fase tão negativa que cheguei a pensar que dificilmente na minha geração voltasse a haver trabalho que permitisse o atelier manter esta dimensão e ainda por cima crescer. Devo dizer que a nossa estratégia durante a fase da crise foram os trabalhos no estrangeiro e por isso o atelier passou muito bem essa fase e, inclusive, crescemos. O sair bem da crise permitiu posicionarmo-nos no mercado nacional de uma forma diferenciadora, não perdemos a prática profissional e isso é muito importante. Eu costumo dizer que o arquitecto tem uma pratica muito idêntica ao cirurgião porque ambos usamos a cabeça e a mão. Mantivemos uma estrutura muito organizada e muito sólida, que além de desenhar presta um conjunto de serviços aos clientes e isso hoje é muito importante, o nós associarmos o acto de projectar ao acto de uma prestação de serviços e da gestão do processo faz toda a diferença num cliente profissional e acho que os clientes têm hoje a perfeita noção disso e que tendo em conta o nível de exigência que existe no mercado têm que andar de mão dada.
Ainda desenha?
Desenho imenso sim…é uma belíssima pergunta. Vejo-me como o fio condutor da parte conceptual toda do atelier e por isso é que estou aqui todos os dias desde as 7h45 até às 22h só tratando da parte comercial da empresa e a fazer contas, não é possível. A base da minha vida profissional é o desenho. É evidente que entre o desenho e a posição de um director criativo elas misturam-se. Hoje o tempo não me permite acompanhar os processos de A a Z constantemente, mas tenho momentos em que gosto de desenhar, gosto de participar na coordenação e onde decido tudo o que é a materialidade dos edifícios na fase de execução.
E se lhe perguntar alguma coisa sobre um determinado projecto sabe dizer?
Sim, sei tudo sobre os projectos. Parece mentira mas é a pura da verdade e os meus clientes sabem disso. E isso é importante para mim. Que o mercado não reconheça isso é-me completamente indiferente. Mas os meus clientes sabem disso e que o meu envolvimento com o trabalho é total e que o meu desenho está sempre presente.
A obra, que hoje começa a ser reconhecida como a obra da Saraiva & Associados, tem um determinado caminho, uma determinada linguagem e eu acho que essa linguagem é reconhecida e é o reflexo do meu pensamento, é o reflexo daquilo que eu gosto de impor pela positiva de um determinado caminho de desenho.
O atelier transmite, obviamente, a sua maneira de pensar e de ver a arquitectura. O que é que define melhor a arquitectura da Saraiva e Associados?
É uma arquitectura que reflecte pensamento arquitectónico e desenho urbano. Que baseia os seus princípios numa relação da ideia com a funcionalidade e o preço de execução com um determinado timing de desenvolvimento. Não gosto de dizer que é uma arquitectura minimalista, não gosto de a classificar. Gosto de dizer que tem sido um caminho, nos últimos 24 a 25 anos, de passo a passo, consistente e, cada vez mais, baseada numa determinada história que eu quero contar e que eu tenho vindo a contar.
Como é que gostaria que vissem a sua arquitectura daqui a 100 anos?
Nunca pensei nisso, apesar de ter feito edifícios que tenho a certeza que vão durar 100 anos o que é uma grande responsabilidade. Isso aumenta a minha responsabilidade no acto de projectar porque sei que os meus edifícios vão ficar para além da minha existência. Não sei se vão ser objecto de estudo, não tenho essa pretensão. Não sei se vão ser objecto de referência, não tenho essa pretensão, mas gostaria que fossem vistos como um acto sério de arquitectura. E é evidente que com o volume de trabalho que tenho tido irei deixar uma marca mas que seja de qualidade, e que se perpetue no tempo e não reflicta apenas um momento ou uma moda.
Além da qualidade a questão da funcionalidade dos edifícios através do tempo é também importante…
Sim, claro. Pelo menos nos edifícios públicos. Não acho que a habitação tenha evoluído assim tanto como outro tipo de usos. Quer dizer evoluiu em termos de conforto mas ao nível da funcionalidade é muito idêntica de há 50 anos. Mas num edifício publico, se ele se perpetuar no tempo também na sua funcionalidade, quer dizer que eu pensei e desenhei não para hoje mas para amanhã. Não sei se tive essa ‘arte’ mas o tempo também o dirá. Eu acho que as tecnologias que temos hoje ao nosso dispor permitem que os edifícios seja mais versáteis no tempo e por isso que tenham maior capacidade de adaptação no tempo.
Retomando a questão do trabalho no estrangeiro, considera que é ainda muito diferente trabalhar cá dentro e trabalhar la fora hoje em dia?
Primeiro considero que Portugal tem belíssimos arquitectos. A qualidade do pensamento arquitectónico é bastante superior e somos bastante reconhecidos lá fora, disso não tenho duvida nenhuma. Há duas formas de exercer a profissão em termos internacionais: internacionalizando o gabinete ou desenhando peça a peça por convite e por reconhecimento e existem muitos que têm trabalho feito lá fora através de convite e de concursos. Na altura fizemos uma internacionalização por opção porque também não tínhamos idade suficiente para conseguirmos ter o tal reconhecimento. Isso permitiu-nos cometer imensos erros, mas aprender também outras formas de exercer a profissão fora da nossa zona de conforto. É evidente que o pensamento arquitectónico mantém-se o mesmo, ainda que adaptado ao clima, à morfologia, à cultura. Tudo isso teve forte influência no desenho que temos vindo a desenvolver. Sinto imenso esse impacto naquilo que desenho em Portugal. O que eu fiz numa primeira fase foi levar a nossa forma de fazer arquitectura para lá e depois trouxe também para cá o que aprendi lá fora. Houve aqui um caminho inverso das influências. Até na forma de abordar o tema da arquitectura, tornando talvez mais abrangente, mais interessante e mais completa.
Qual é o maior desafio quando se trabalha no estrangeiro?
Em termos de procedimentos é que é muito diferente e essa adaptação é muito dura e por isso optamos por abrir estruturas próprias e não parcerias. Hoje em dia já estamos muito mais organizados e reduzimos muito a nossa dispersão geográfica porque os países onde nós nos poscionamos foram aqueles que na altura tinha uma necessidade enorme de infraestruturas e que passados estes 15 anos já não existe tanto.
Entretanto fechamos o atelier da China e parqueamos o atelier da Venezuela devido às circunstâncias politicas e também o do México. No Vietname e nas Filipinas estamos com projectos. Ou seja, temos alguns projectos pontuais e não de continuidade como foi durante alguns anos. Por exemplo, o mercado da Argélia foi o que substituiu basicamente o mercado nacional português e, hoje em dia, atravessa uma grande crise e uma desvalorização enorme da moeda. E se já na altura eramos considerados caros, hoje tornamo-nos 3 ou 4 vezes mais caros. Naturalmente que os promotores locais optam pelos gabinetes nacionais do que os internacionais.
Mas tem sido muito positivo. É uma corrida de fundo. Não é ‘um toque e foge’. Entrar num mercado é muito difícil e sair dele é de uma grande responsabilidade e isso tem custos.
Como é hoje a Saraiva e Associados com a experiência da internacionalização?
A verdade é que hoje o nosso adn se deve à nossa internacionalização. Se 90% dos nossos clientes em Portugal são de investimento estrangeiro é porque existe o reconhecimento do nosso trabalho no estrangeiro. Neste momento estamos naquilo a chamo a terceira fase da nossa internacionalização. Por exercermos a profissão lá fora, sem grandes ganhos económicos, mas com um fortíssimo ganho do exercício da arquitectura. Se me perguntar: Foi um sucesso? Foi um sucesso, mas em termos de experiência e de desenho. Não foi um sucesso económico. Esqueça isso, porque o investimento foi enorme e o retorno foi muito lento. E foi esse crescimento profissional que depois se reflectiu no pós crise em Portugal porque nos tivemos muito cliente, de geografias muito dispares, que trabalharam fora connosco, que acreditaram em nós, e quando vieram investir em Portugal ou nos recomendaram ou vieram nos bater à porta directamente. E isso talvez tenha sido a mais valia da internacionalização. E hoje começam a levar-nos para países muito mais maduros onde nós não exercíamos.
Falando agora nas varias vertentes da arquitectura, seja habitação, equipamentos públicos, turismo, promoção, a Saraiva e Associados tem também trabalhado em todas elas…
Devido à sua escala e conhecimento o atelier tem hoje diferentes arquitectos com diferentes know-how em diferentes áreas. É evidente que a área onde nós actuamos mais é na habitação. Depois a área hoteleira, o turístico e depois a parte hospitalar. E depois temos muitos projectos de escritórios mas não acho que os escritórios sejam um know-how próprio do atelier. Apesar de ser um desafio interessante, fazer um escritório em Portugal, em Bogotá ou no Cazaquistão não tem grande diferença porque os princípios são exactamente os mesmos. Acho que os escritórios tornou-se numa coisa muito mais global, enquanto que no segmento habitacional ainda é algo muito local. Os espanhóis, que são nossos vizinhos habitam diferentes de nós. Imagine um colombiano, um cazaque ou um chinês…por isso eu acho que o tema habitação é muito mais desafiador.
Mas acha que nesse caso nos escritórios se está a viver uma uniformização dos padróes, das tendências?
Não acho que haja uma uniformização. Há, sim, determinados princípios que tem que ser respeitados. Se um edifício de escritórios procura a rentabilidade nós temos que ir atrás dessa rentabilidade e isso está estudado – as malhas americanas, as malhas europeias. Isso não nos tira criatividade em relação ao objecto mas nós sabemos que o openspace de um escritório é muito melhor do que uma planta cheia de pilares e por isso nós sabemos que há determinadas malhas estruturais que tem que se reflectir num desenho. A verdade é que quando se desenha um edifício de escritórios não se sabe quem o vai usar e por isso ele tem que ser suficientemente versátil para permitir um openspace ou clusters de diferentes dimensões. Não deixa de ser uma desafio enorme em termos criativos, mas no que diz respeito à sua funcionalidade e à sua forma de habitar, apesar dos escritórios seguirem determinadas tendências, eu acho que um programa habitacional é muito mais difícil.
E no meio de tanta globalização não sofremos o risco de termos os projectos todos tabelados pela mesma standardização?
Não, de todo, nós temos factores como a luz, o mar, que nunca vamos perder e tem uma influência enorme. Aqui no atelier nós combatemos imenso isso em relação ao tempo. Por exemplo, nós arriscamos imenso a questão de falhar o tempo na procura da solução e por isso é que nós, os arquitectos, somos vistos como desorganizados e que trabalham demasiadas horas. Não é verdade. Nós estamos sempre à procura da excelência e essa procura precisa de tempo.
Acha que a profissão é pouco reconhecida?
Acho que a profissão é pouco reconhecida quanto ao seu papel e isso é uma questão cultural. Se as pessoas soubessem qual é o papel do arquitecto na sociedade e o bom que é haver arquitectos talvez o reconhecimento da profissão fosse muito maior e a procura do que é o nosso papel e o que representa o exercício da nossa profissão ou os actos próprios da profissão talvez nos dessem mais tempo. Mas, por outro lado, nós temos uma grande dificuldade nesta comunicação, em comunicar o que é nos somos na sociedade.
E o que é mudaria?
A única virtude que eu vejo em haver muitos arquitectos na sociedade portuguesa é a criação de uma maior sensibilidade junto das nossas famílias, dentro do nosso habitat. Por exemplo, não é possível que alguém que não seja advogado constitua uma sociedade de advogados, mas porque é que uma sociedade de arquitectos pode ser constituída por engenheiros. Isto mostra exactamente o parâmetro onde nós estamos. Isto é uma luta da classe profissional e devíamos unir-nos mais neste sentido.
Mas esta não é propriamente uma questão nova…
Mas nós temos muita dificuldade, talvez seja uma característica própria dos arquitectos temos dificuldade em comunicar o nosso papel na fileira da construção e temos dificuldade em dialogar entre nós. Talvez por isso, os outros agentes ‘entram’ nessas fissuras e hoje nós temos, em pleno século XXI, engenheiros a assinar projectos de arquitectura. É miserável! Não há outra classificação. Nós temos uma Ordem dos Arquitectos, com estatutos aprovados em AR, que tem força de lei e onde diz que a arquitectura é para os arquitectos, mas por outro lado existem outros decretos que permitem que os engenheiros assinem projectos de arquitectura. Isto faz-me pensar que não vivemos num país desenvolvido culturalmente. Quer dizer, eu não pratico actos de medicina sendo arquitecto, então porque é que isso acontece com a arquitectura. Isto é demonstrativo do quanto o arquitecto é frágil na sociedade portuguesa.
E isso preocupa-o?
A mim pessoalmente não, mas preocupa-me em termos de futuro e da qualidade daquilo que se faz.
Mas acha que a OA está um pouco descredibilizada junto dos arquitectos?
Eu não diria isso. Acho é que há um desconhecimento do papel da Ordem juntos dos arquitectos e qual o papel na defesa dos seus interesses e a Ordem tem também uma grande dificuldade em comunicar qual o seu papel. É uma questão cultural dos arquitectos e do próprio ADN da profissão. Estamos numa encruzilhada enorme há anos.
Estão de costas voltadas? Os arquitectos e a Ordem?
Estão evidentemente, mas a OA não é um veiculo de promoção dos arquitectos e ás vezes cai nesse caminho e mal. Parece-me que a Ordem se prepõe a determinadas coisas que não se devia propor e por isso é a classe não reconhece à Ordem ou não percebe o que é neste universo. Mas a Ordem tem um papel importantíssimo na defesa dos interesses dos arquitectos. Há uma grande dificuldade de comunicação. Nós comunicamos através do desenho e não através da fala nem através da escrita.
Já terminou algum projecto e pensou :”isto não ficou como eu queria!”?
Tenho imensos projectos que eu acho que foram actos falhados por diferentes motivos. Mas a maior responsabilidade é a minha e por isso o que desejo é continuar a fazer o que faço, cada vez melhor.
Que legado é que gostaria de deixar?
O legado da responsabilidade que nós temos quando estamos a desenhar, a capacidade de contribuir para uma profissão cada vez mais profissional, que tenha nos próximos anos a capacidade de dar a minha experiência a terceiros no acto da profissão e na regulamentação da própria profissão e que de certa forma, contribua directamente para um reconhecimento dos meus pares.
Como é que isso se faz?
Eu explico: os arquitectos são conhecidos por normalmente terem uma actividade de cariz liberal mas eu acho que cerca de 80% dos arquitectos hoje trabalham para terceiros. Só aqui em Lisboa somos 130 com contratos de trabalho. Não têm nada de liberais a não ser o seu pensamento. Desta forma eu contribuo para um certo conforto deles e para um regular da própria profissão.
Mas é evidente que a Saraiva e Associados ao ter esta postura é menos competitiva do que todos os outros que não o fazem. Porque infelizmente o preço tem ainda um grande peso e eu quando meto o meu preço em cima da mesa não posso esquecer-me da minha obrigação para com os trabalhadores que tenho aqui comigo. E acho que todos nós os devíamos fazer e parte do respeito de criar estas condições que tenho por eles mas isso obriga da minha parte a obrigações maiores e obriga da parte dos meus arquitectos também a deveres. Se eu conseguir perpetuar este modelo para além da minha existência dentro da minha empresa também me sentirei bastante satisfeito.
Mas esse é um bom objectivo…
Sim, mas é objectivo que me traz imensas frustrações. Nunca vou conseguir fazer tudo, mas porque os factores externos ao exercício da própria profissão e ao próprio acto de desenhar são tantos, tantos, tantos. Hoje em dia o factor económico e da qualidade da construção tem um impacto gigante no desenho da arquitectura e nos projectos em si e isso é algo que, nós arquitectos, não temos peso para controlar e isso é muito negativo. É por isso que aquilo que eu quero é desenhar bons objectos, independentemente da dimensão ou daquele aquele uso ou não, aquilo que eu quero é fazer muito bem.
Mesmo com as limitações que às vezes tem…
Vou lutar sempre contra elas, e vou me juntar a elas para me tornar mais forte e buscar a perfeição. Mas isto pode levar à loucura, tenho a perfeita consciência disso.
É uma profissão muito dura a todos os níveis, seja com os próprios colegas, seja com os agentes da construção, da fiscalização, os engenheiros, e a juntar a isso os factores naturais que também são condicionantes. É muito duro e 99% das pessoas que nos encomendam trabalho não tem essa noção.
E faz questão de o dizer às pessoas?
Claro que sim, imensas vezes. Mas acham que é tudo uma conversa. Sabe que a ignorância é muito atrevida. As pessoas não tem noção do que nós sofremos, do que nos sujeitamos e, em muitos casos, pagamos para o fazer quando os honorários são abaixo do custo do próprio trabalho. A profissão tem que levar uma volta de 180º começando pelos próprios arquitectos.
E como é que isso se faz?
Faz através dos meios legais, ou seja, através da Ordem dos Arquitectos, e por outro lado, aumentando a nossa responsabilidade e a qualidade do trabalho que fazemos junto dos nossos clientes. Só desta forma é que o próprio mercado nos irá valorizar.